O compositor, intérprete, instrumentista e arranjador Luiz Carlos Borges

LEONARDO WEXELL SEVERO

Faleceu na noite desta quarta-feira (10), aos 70 anos, com problemas de aneurisma da aorta, o cantor, compositor e acordeonista Luiz Carlos Borges, um dos ícones da música nativista gaúcha e da integração latino-americana, aquele que “pela gaita aprendeu os sonhos do pai”.

Talento inquestionável, conquistou mais de uma centena de prêmios em festivais como compositor, intérprete, instrumentista e arranjador, sempre valorizando a arte como meio de aflorar o melhor nos seres humanos. Era assim que esperava estar cumprindo sua missão, dizia.

Nascido em Santo Ângelo, elegeu São Luiz Gonzaga, também cidade missioneira, como sua “terra de adoção”. Era o mais novo de uma família de sete filhos, tendo começado a desbravar os acordes estimulado pelo pai com apenas sete anos. Integrando o conjunto “Irmãos Borges”, subiu no palco com nove anos em outubro de 1962 e nunca mais parou de encantar.

Saiu de casa adolescente para aprender e beber de outras culturas. Recorda que quando o preconceito pegava pesado e “era proibido tocar Chamamé”, estilo musical tradicional da província de Corrientes, Argentina, atravessou o rio Uruguai. “Nunca aceitei culturas impostas, empurradas goelas abaixo, sempre adotei uma postura de raiz, sou o famoso pé no chão”, assinalava Borges, para quem “a cultura fronteiriça é o que move a alma gaúcha”.

SOLIDARIEDADE A CUBA

Sua gaita soou forte em solidariedade a Cuba em 1997, levando ao Malecon e ao teatro Karl Marx em Havana toda a intensidade dos seus acordes anti-imperialistas, em defesa da soberania e da fraternidade entre os povos. Produtor dos espetáculos, o cantor e compositor Luiz Carlos Gomes Borges (Bahia) recorda situações que lhes fizeram rir muito durante sua estada na Ilha. “Eu e o Luiz Carlos Borges passamos por coisas pitorescas. Os dois éramos Borges, Luiz, o que num primeiro momento chamou a atenção até da Polícia Federal. A minha mulher ligava e caía no quarto dele, o pessoal dele ligava pra ele e caía no meu”. Bahia associa o gaúcho a “uma pessoa de humor incrível, de uma educação fantástica, atento à música popular brasileira, brilhante músico e grande instrumentista. Torcedor do Grêmio, levou a bandeira tricolor, vai deixar uma lacuna muito grande. Luiz Carlos Borges, presente!”

Na abertura do documentário “O milagre de Santa Luzia”, Dominguinhos lembra de uma gira que fez pela Argentina ao lado de Luiz Carlos Borges, “da sua grandeza como músico e como pessoa excelente, extraordinária”. De que era alguém que acreditava nas novas gerações, citando como exemplo o fato de ter impulsionado o violeiro Yamandú Costa, sempre estimulando seu imenso potencial. Entre outros, era amigo de Maria Rita e Lenine, tendo tocado com bandas de rock como Nenhum de Nós e Engenheiros do Hawaii.

O SUCESSO DE TROPA DE OSSO

A carreira solo de Borges começou no início da década de 80 com o sucesso da música “Tropa de Osso”, (De vez em quando no horizonte do passado/ Surge uma nuvem de lembranças andarilhas/ Vai repontando para dentro do meu peito/ A minha infância com seus ossos em tropilha) premiada na Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, festival referência para todos os gaúchos.

A gaita abriu caminhos e aprofundou reflexões, como a que questiona se o tempo é ou não uma sentença, com “Florêncio Guerra”, um simples e velho peão de fazenda, repassando sua vida na canção ao receber a difícil missão do empregador: matar seu cavalo! (O patrão disse a Florêncio/ Que desse um fim no matungo/ Quem já não serve pra nada/ Não merece andar no mundo/ A frase afundou no peito/ E o velho não disse nada/ E foi afiar uma faca/ Como quem pega uma estrada/ Acharam Florêncio morto/ Por cima do seu cavalo/ Alguém que andava no campo/ Viu um centauro sangrado/ Caídos no mesmo barro/ Voltando pra mesma terra).

Cantava de forma refinada o amor, emprestando a ele seus mais belos acordes, como no “Romance na Tafona”, com versos de Antonio Carlos Machado. (Maria, florão de negra/ Pacácio, o negro na flor/ Se negacearam por meses/ Para uma noite de amor/ Na tafona abandonada que apodreceu arrodeando/ Pacácio serviu a cama e esperou chimarreando/ Do pelego fez colchão do lombilho, travesseiro/ Da badana fez lençol fez estufa do braseiro/ A tarde morreu com chuva/ Mais garoa que aguaceiro/ Maria surgiu na sombra/ Cheia de um medo faceiro/ A negra de amor queimava/ Tal qual o negro na espera/ Incendiaram de amor/ A tafona, antes tapera/ A noite cuspiu um raio que correu pelo aramado/ Queimando trama e palanque na hora desse noivado/ E o braço forte do negro entre rude e delicado/ Protegeu negra Maria do susto desse mandado).

No total foram 35 discos, 260 composições e 720 gravações registradas no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Uma carreira majestosa, seja ao lado de Gonzagão ou de Mercedes Sosa, com quem gravou “Misionera” no último álbum lançado pela cantora argentina (¿Por donde andarás, por donde andaré?, ¿Donde está el amor que jure por ti? ¿Quién te amará como yo te ame? Lejos de tu amor… ¿Cómo iré a vivir?”.

Toda uma trajetória embalando uma bem-sucedida carreira internacional, comprometida com o melhor dos seres humanos e divulgando o que há de melhor da música gaúcha, brasileira e latino-americana.

ADMIRADOR DE GONZAGÃO

Luiz Carlos Borges não se cansava de dizer que “considerava Gonzagão o verdadeiro patrimônio mais sério da música popular brasileira, dessa música levada ao povo”. Recordava ter tido a oportunidade de conviver durante uma semana com o mestre, e que os dois haviam “compartilhado a intensidade do convívio”. Na oportunidade, contou ao nordestino que estudava muito a sua obra e que cursando Música na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) fez um extenso trabalho de pesquisa sobre o repertório do sertanejo. Essa informação tornou ainda mais intenso o convívio, disse Borges, pois “ele gostou muito de um gaúcho saber tanto da obra de um nordestino”.

“De tanto ouvir Gonzagão um dia me dei conta de que Asa Branca e o Canto Alegretense tinham nada parecido, mas conexões em termos de regionalidade. O Canto Alegretense é uma canção feita pelo Bagre e o Nico Fagundes que deram muito certo na música regional gaúcha, e porque não dizer na música regional brasileira, que é muito conhecida. Gravado em vários idiomas, é um hino popular que se toca diariamente em tudo que é parte. Nenhuma tem elementos da outra como composição, como nota musical ou arranjo, mas tinha como algo do toque da regionalidade”, relatou Borges.

Com orgulho, recordou ter ouvido Gonzagão dizer que tocava falando, se divertindo, mexendo com os que passavam na mesma onda de um veterano gaudério. “Eu perguntei e Gonzagão não vacilou, repetiu com essas palavras: eu copiei Pedro Raimundo, eu me inspirei, eu vi Pedro Raimundo e adotei o estilo. Só não trai nunca o meu destino, minha raiz, que é o que eu domino”, enfatizou.

Do seu lado, com “Baile de Fronteira”, Borges estampava o pleno conhecimento da terra: “Tudo começou em Corrientes num baile, veja você/ Também se orelhava um truco que é um modo de se entreter/ Um ás que sobrou na mesa bastou pra coisa ferver/ A cachaça brasileira alguma culpa há de ter/ E foi tiro e cimbronaço, pago pra ver/ Deixa que venha no braço pra se entender/ Se um facão marca o compasso, deixa correr/ Enquanto sobrar um pedaço, vamo’ meter”.

Deixou em “Coração de Gaiteiro”, parceria com Mauro Ferreira, um presságio: “Um pago sem um gaiteiro/ É um mato sem passarada/ É noite sem madrugada/ É rancho sem candieiro”.

E assim ficamos. Por hora.

 

Veja o documentário O milagre de Santa Luzia, sobre a vida de Luiz Carlos Borges

 

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