Participei da cobertura das eleições presidenciais no Equador em agosto e outubro passado e a explosão de violência que tomou conta das manchetes da mídia em todo o mundo nos últimos dias não surpreendeu. Quem acompanhou as reportagens da Agência ComunicaSul durante os dois turnos pode confirmar agora tudo o que mostramos e que, para muitos, parecia exagerado, embora simplesmente retratássemos a realidade. O Equador é um país onde o Estado tomou a opção política de se retirar de cena a partir do governo de Lenin Moreno, que sucedeu Rafael Correa, e de Guillermo Lasso, que foi obrigado a abreviar seu mandato para escapar de um impeachment inevitável.

“As máfias apareceram com mais força e hoje estão institucionalizadas. Nas cadeias os criminosos têm armas de alto calibre, eletrodomésticos, todos os benefícios. Foi com Lasso que começamos a conhecer as máfias que por aqui se desenvolveram.”, afirmou a juíza Rosa Salazar ao ComunicaSul.

Caio Teixeira

O espaço ocupado hoje pelo crime organizado no Equador não é resultado de um acaso histórico ou de um lamentável acidente místico do destino, mas tem origem claramente identificada no modelo econômico.

“O que estamos vivendo no Equador é precisamente o produto da aplicação rigorosa do modelo neoliberal durante os dois últimos governos [de Moreno e Lasso]. Um modelo que está tingido de sangue, porque há uma estratégia muito forte de acumulação ilimitada de riqueza, que é presa fácil para a lavagem de dinheiro de droga, para o crime organizado e para a economia criminosa. Uma sociedade em que o Estado é abandonado, em que o Estado é enfraquecido. Dessa forma é um grande terreno fértil para o aparecimento e a expansão de bandos criminosos e da violência generalizada. Portanto, estão muito ligados o modelo econômico com esta rede de economias criminosas que hoje assolam o Equador.” O diagnóstico é da Antropóloga Ana María Larrea, doutora em Políticas Públicas e ex-Secretária de Erradicação da Pobreza nos governos de Rafael Correa, em entrevista ao ComunicaSul, em agosto passado.

O crime organizado infiltrou-se de tal forma na estrutura do Estado, reduzido a um mínimo impensável, que qualquer tentativa, por menor que seja, como transferir de presídio algumas lideranças dos grupos criminosos é suficiente para gerar o caos que aparece na mídia como uma surpresa.

O Equador se transformou nos últimos anos no maior exportador de cocaína para a Europa ainda que não produza um só grama do pó. Diante da quase extinção do Estado por obra dos últimos governos, os grandes cartéis de droga colombianos e mexicanos passaram a utilizar o país do “meio do mundo” como parque logístico para as atividades de exportação de droga. Para tanto, se utilizam da “infra-estrutura” criminosa local, batizada pelos próprios órgãos do Estado como “Grupos de Delinquência Organizada”.

Tais organizações, longe de serem um “Cartel” que equivale no mundo do crime às corporações multinacionais, mais se parecem com as que no Brasil costumamos chamar de “facções”. São bandos que vivem da exploração do “varejo” das drogas dentro do território nacional e de outros crimes como assalto a bancos e assassinatos por encomenda. Esses grupos controlam integralmente os presídios usados como quartéis generais das facções com total liberdade e independência.

Uma raríssima intervenção conjunta da polícia e do Exército realizada há poucos meses na penitenciária de Guayaquil apreendeu um arsenal de respeito, com grande quantidade de pistolas, fuzis, metralhadoras, explosivos, lança-granadas e farta munição. Esse presídio, o maior do país é controlado por várias organizações que distribuem entre si os diversos pavilhões. Foi dali que fugiu “Fito”, o líder dos Los Choneros, há poucos dias, dando início à escalada da violência no país. Lá também foram executados seis acusados de matar o ex-candidato presidencial de direita Fernando Villavicencio, poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais.
A atual crise foi provocada pela ordem de transferência de chefes dos bandos par outras penitenciárias, o que não agradou a “comunidade” do crime.

Já tivemos casos semelhantes no Brasil em que transferências de lideranças provocaram motins, execuções, incêndios de carros e ônibus e ataques à bala a delegacias de polícia. Embora semelhantes na motivação, por aqui os ataques criminosos não chegaram à proporção do que vem acontecendo no Equador desde a última segunda-feira (8/1).

O historiador equatoriano Juan Paz y Miño Cepeda resume com propriedade os recentes acontecimentos. Para ele, os grupos de delinquência organizada declararam guerra contra o Estado. Ele lembra que sempre as perguntas a serem feitas do ponto de vista histórico são: “que forças ocultas estão conduzindo tudo isto? Em benefício de quem?”

A advogada Angélica Porras Velasco, da Acción Jurídica Popular, entidade equatoriana que defende os direitos constitucionais da população, em entrevista à ComunicaSul, não tem dúvidas em responder chamando atenção para um fato crucial: a dolarização do sistema monetário, como ocorreu no Equador, onde desde o ano 2000 a moeda é o dólar estadunidense, cria condições perfeitas para que o país se torne uma grande lavanderia de dinheiro sujo, em especial oriundo do tráfico de drogas. Todo esse dinheiro lavado passa pelos bancos equatorianos para entrar legalmente no mercado, tornando essas instituições os maiores beneficiários do narcotráfico, logo depois dos cartéis produtores e exportadores. É o óbvio saltando aos olhos. Quanto mais dinheiro circula pelas contas de um banco, maiores são seus lucros.

Também é óbvio que a mídia dominante se ocupa de esconder essa relação. Para o Jornal da Globo, edição de 9/1, que chegou ao ridículo de chamar um correspondente em Nova Iorque para “relatar” a crise de violência no Equador, a causa dos conflitos é a influência de “cartéis mexicanos”. De onde a repórter tirou informações sobre a crise equatoriana em Nova Iorque, sem ir ao Equador? Obviamente lendo os jornais estadunidenses que, como a emissora brasileira, jamais dirão que a causa verdadeira é a política neoliberal, defendida por eles, que reduziu tanto o tamanho do Estado a ponto do crime organizado atuar com total liberdade. Tampouco vai lembrar às suas audiências que os bancos engordam absurdamente seus lucros com dinheiro lavado do narcotráfico. Como disse um jornalista estadunidense uma vez: “se quiser encontrar a verdade, siga o dinheiro”.

Se quiser entender melhor a realidade atual do Equador leia aqui as 53 reportagens da Agência ComunicaSul nos primeiro e segundo turnos das eleições presidenciais realizadas em agosto e outubro passados. Não precisa pagar nada. É grátis.

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