Twitter Francia Márquez Com Francia, será a primeira vez que os “nadies” ninguéns, ocuparão a Casa de Nariño, o governo na Colômbia

De origem pobre, mãe solteira e ex-empregada doméstica, a líder feminista Francia Márquez se formou em Direito para defender a natureza e sua comunidade de origem quilombola

Por Vanessa Martina Silva/ COMUNICASUL

Mais vida para acabar com a morte. Viver saborosamente para tirar o amargor que impuseram à sua existência. Com o sonho de ser cantora, atriz e bailarina quando criança, Francia Elena Márquez Mina já não tem o sorriso tão fácil. O canto e a dança saíram do cotidiano. “Por medo, eu entrei na política”, disse em certa ocasião, e foi a coragem de enfrentar o mundo e a necessidade de agir que incutiram nela um novo sonho: ser presidenta da República.

O debate filosófico sobre o livre arbítrio é para mim uma falsa questão. A algumas pessoas não lhes é dado o direito de escolherem seus destinos, de se atordoarem diante das mazelas da vida ou de se imobilizarem frente a situações que ameaçam suas próprias existências. É assim com Márquez, eleita vice-presidenta na coalizão Pacto Histórico, junto com Gustavo Petro.

Nascida em dezembro de 1981, ela expressa o sentipensar ancestral da gente negra, que aqui no Brasil manifesta orgulhoso que “nossos passos vêm de longe”. Em seu corpo, Francia carrega as lutas do povo colombiano e representa a história de muitos pretos na diáspora, que dedicam a vida em defesa do que ela chama de Nossa Casa Comum, a Terra, a natureza, a Pachamama, como dizem os povos originários.

A comunidade de onde ela vem, La Toma, no norte do estado de Cauca, no Pacífico colombiano, data de 1636. Nos primórdios, foi um quilombo, chamado no país de “palenque”. Desde então, seu povo tem vivido em sintonia com a natureza, plantando bananas, mandiocas, café e hortaliças e realizando mineração artesanal de ouro na margem dos rios.

Somente em 1851 a Colômbia aboliu a escravidão e, como no Brasil, não foi realizada qualquer reparação histórica. Na Colômbia, a população preta se concentra no Pacífico e no Caribe, enquanto a zona andina, onde está Bogotá, por exemplo, se caracteriza, majoritariamente, por sua população descendente de espanhóis.

Os dados sobre o tema são controversos. O censo de 2005 apontou que negros representam 10,5% da população total do país. Porém, de acordo com a Conferência Nacional de Organizações Afrocolombianas, vários estudos indicam que entre 20 e 25% dos colombianos são afrodescendentes, o que significa entre 10 e 12 milhões de pessoas.

Outro número importante para compreender a história de Márquez Mina é que, de acordo com dados oficiais, 80% de todo ouro extraído do país é produzido ilegalmente, com métodos que promovem devastação ambiental.

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“Desde pequenos nos ensinaram o valor da terra, sabemos que os territórios onde” … e a fala de Francia Márquez é interrompida por lágrimas. Ela retoma: “construímos nossa comunidade e criamos nossa cultura, não foram um presente, pois custou aos nossos mais velhos muitos anos de trabalho e sofrimento nas minas escravistas”.

Muito emocionada, é assim que Francia Márquez inicia o discurso que fez ao receber o prêmio Goldman, em 2018, por sua liderança ambiental. A premiação é considerada o Prêmio Nobel dos ambientalistas.

Para chegar até o segundo posto mais alto da política colombiana, Francia realizou uma longa jornada e empreendeu — literalmente — uma caminhada extensa até se tornar símbolo não só de seu país, mas referência para todo o continente.

Primeiros passos

Dizem que La Toma está toda assentada sobre o ouro e, como uma característica do realismo mágico colombiano, está envolta nas mais cruéis contradições:

“Banhada por sete rios, não tem água potável. Suas terras abrigam uma usina hidrelétrica, mas pagam mais caro que o resto do país por energia. Eles nunca se sentiram tão inseguros como quando uma base militar foi instalada em seu território. E eles nunca foram tão pobres como no dia em que o mundo soube que estavam cheios de ouro”. Essa é a descrição do local feita pelo site Terra de Resistentes.

A hidrelétrica Salvaijna foi construída em 1985 e mudou para sempre a relação que os habitantes do município de Suárez teriam com o rio Cauca. “Como fruto dessa represa, ocorreu um grande fenômeno de deslocamento da população. Quando se intervém em uma comunidade com um projeto transnacional, isso impacta a sociedade negativamente”, conta, em entrevista à ComunicaSul, Héctor Marino Carabali Chrupi, porta-voz da Coordenação Étnica Nacional da Paz (Cenpaz) e da Coordenação de Comunidades e Organizações Afrodescendentes (Conafro).

À esquerda, Francia em sua comunidade, ainda adolescente; à direita já como política percorrendo o país em defesa de sua candidatura | Reprodução

Estima-se que a construção tenha obrigado o deslocamento de mais de seis mil pessoas. Em 2006, o município de Suárez tinha 18 mil habitantes, contra 23,5 mil registrados em 1993. De acordo com o Tribunal Permanente dos Povos, militares e paramilitares atuaram para despejar a população.

A comunidade de La Toma ficou traumatizada e reagiu quando, anos mais tarde, começaram as tratativas para desviar o rio Ovejas e assim aumentar em 20% a capacidade da hidrelétrica Salvaijna. Francia Márquez tinha neste momento 13 anos e começou a participar das assembleias comunitárias de populações negras que discutiam esse impacto em seus povoados.

Já afetados por tudo que envolveu essa construção, a população se opôs veementemente ao desvio do rio e passou a cobrar as contrapartidas prometidas na época de implantação do projeto. Desta época data a mais antiga entrevista de Francia a uma TV nacional colombiana. Ela tinha apenas 14 anos e criticava a precariedade da educação para aqueles que, como ela, eram jovens negros em La Toma:

O esforço comunitário freou o projeto. A partir dessa vitória, compreendeu que “sim, é possível”.

A batalha judicial

Quando ainda estava no ensino médio, aos 16 anos, engravidou de seu primeiro filho com um mineiro local, que a abandonou. Anos mais tarde, viria a contar que durante dois anos sofreu com pesadelos, sonhando que o professor não a deixava entrar na sala ou que o uniforme não tinha secado a tempo de ir para a escola. Nem isso tirou seu sonho de seguir os estudos.

Com o apoio da sua família direta e da família estendida de toda a comunidade, nunca deixou de lutar por seu povo. Se tornou uma importante liderança, a maior de La Toma, formada por cerca de 1.300 famílias, em sua maioria negras.

Comunidade de La Toma | Tierra de Resistentes

Ainda com centralidade na defesa do rio, entra em cena a batalha contra a mineração ilegal e inconstitucional. A ação de mineradoras na região tornava o solo inapto para atividades agrícolas, impactava a mobilidade das pessoas na região que passaram a sofrer ameaças de grupos armados.

No total, em Suárez, foram outorgados 13 títulos de exploração mineira, a maioria em nome de Héctor Jesús Sarria. Para isso, o Ministério do Interior argumentou que não havia comunidade negra na zona a ser explorada, portanto, não havia necessidade de aplicar a consulta prévia para esses projetos, como determina a Lei 21, de 1991, sob convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Assim, o juiz de Popayan, capital de Cauca, ordenou a saída de 500 mineiros tradicionais de La Toma. Por esse motivo, em 2002, Francia e demais líderes sociais entram com uma tutela em defesa do direito à vida digna, à consulta prévia e à defesa do território da comunidade.

Dois anos depois, o tema ganha ainda mais centralidade quando o então presidente Álvaro Uribe entrega à empresa Sociedad Kedahda S.A. um título de exploração territorial de 50 mil hectares para mineração de ouro. A área era tão grande que abarcava toda La Toma. Nem o cemitério se salvava, como contam os moradores.

Apenas em 2010, após várias derrotas em cortes inferiores, Francia consegue a tutela na Suprema Corte do país e, assim, obtém autonomia e uma “blindagem” provisória para deter a operação extrativista na região, o desalojamento da comunidade, o direito à consulta prévia e a proteção à Identidade e Integridade Étnica, Cultural, Social, Econômica da Comunidade Afrodescendente.

Outra importante vitória.

Exilada em sua terra

Junto ao empenho da luta contra a mineração chegaram as primeiras ameaças de morte. Os grupos Águilas Negras, que surgiram após a suposta desmobilização dos paramilitares no governo Uribe, implementaram verdadeiramente o terror na região. Em 7 de abril de 2010, homens armados assassinaram oito mineiros nas margens do rio Ovejas. Estes homens juraram matar Francia Márquez.

Motivada pela luta que acabava de travar na Justiça em defesa de seu território, em 2011, Francia começa a estudar direito em Cali, capital do estado vizinho Vale do Cauca.

Para manter os estudos e os dois filhos — engravidou novamente aos 20 —, trabalhou como empregada doméstica, destino comum a muitas mulheres de pele escura como ela.

Desse desdobrar em múltiplas tarefas vem também a identificação de parte importante da população com sua figura. “Vemos Francia como uma mulher que teve que superar muitos obstáculos, que teve que enfrentar a luta por seu território, discriminação contra os setores menos favorecidos. Para as pessoas comuns, ela é uma mulher como todas nós, uma mãe solteira que conseguiu ir adiante por esse desejo de lutar”. Essa é a avaliação de Rita Patricia Villa Callejas, Medellín, educadora ambiental em Medellín, capital do estado de Antióquia.

Até 2014, Francia se dividiu entre os estudos e a função de representante legal da população de La Toma, transitando entre esses dois territórios. Porém, em outubro daquele ano, durante uma reunião com a comunidade, foi avisada, diante de seus filhos, que paramilitares planejavam matá-la naquela mesma noite e não poderia mais permanecer no local.

Imediatamente se organiza sua fuga para Cali. Saem, ela e os filhos, na madrugada do dia seguinte e, como em um filme, ao passar pela ponte de La Toma com o sol apenas despertando no horizonte, vê a caminhonete onde estariam seus algozes. Eles, no entanto, não a viram. Se safou, mas as ameaças desta vez chegaram muito perto.

Marcha dos Turbantes

Márquez Mina se torna, assim, uma das mais de oito milhões de vítimas colombianas que foram obrigadas a fazer uma diáspora forçada em seu próprio território nos últimos 60 anos — de acordo com informe da Comissão da Verdade.

Em Cali, ela se sentia agoniada por não conseguir se informar totalmente do que ocorria na sua região que, naquele momento, apesar da tutela que tinham conseguido para frear a mineração legalizada, tinha dezenas de retroescavadeiras e mineradores ilegais contaminando o rio Oveja.

Um mês após sair para o exílio forçado, enquanto estava na sala de aula, recebe uma ligação dando conta de que o povo, cansado da violência e das ações de mineração ilegal no território, iria parar as máquinas a qualquer custo, com paus, pedras e os próprios corpos.

Diante do desespero de ver que a luta que estavam empreendendo não dava resultado, Francia Márquez tem uma ideia inusitada: marchar de La Toma até Bogotá, por mais de 600 quilômetros, para fazer com que o governo fosse obrigado a, enfim, tomar providências sobre a situação.

Pessoa em pé segurando placa Descrição gerada automaticamente

@RedProyectoSur

Aí inicia a jornada de sua liderança nacional. Mesmo ameaçada de morte por paramilitares, ela e mais 15 mulheres — com turbantes que costuraram junto com à população de La Toma — caminham por 22 dias até chegar ao Ministério do Interior. No percurso, outras 65 se somam e ao final são 150.

Elas permanecem uma semana no prédio, dormindo, lavando suas roupas — e resistindo — até que finalmente o então ministro do Interior, Juan Fernando Cristo, e o presidente à época, Juan Manuel Santos, aceitam dialogar. A ação obrigou a mídia a debater e visibilizar a questão da mineração ilegal no estado de Cauca e em toda a Colômbia.

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