“A palavra Pátria é um conceito totalmente estranhopara Milei”, afirmou a ex-presidente Cristina Kirchner alertando que o “plano de desestabilização retroalimenta a espiral inflacionária, colocando a sociedade argentina à beira do precipício”.

LEONARDO WEXELL SEVERO – Hora do Povo

A ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015) e ex-vice-presidente (2019-2023) da Argentina apresentou um documento em defesa da nação que denuncia a camisa de força do projeto neoliberal que Javier Milei tenta impor aos cidadãos com a dolarização da economia e a submissão aos ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Da equipe do presidente que conversa com seu cachorro morto, apontou, compõe o atual ministro da Economia, Luis Caputo, recordado como “serial killer das finanças” do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) – que afundou o país em dívidas e recessão.

Em um documento de 33 páginas, distribuído recentemente, a líder argentina esclareceu que “o novo governo implementou um feroz programa de arrocho”, “numa espécie de caos planificado”, pois “não só retroalimenta a espiral inflacionária, colocando a sociedade à beira do precipício, mas que provocará irremediavelmente o aumento do desemprego e do desespero social”. “É mais do que evidente que, na cabeça do presidente, o único plano de estabilização é a dolarização. Não são explicadas medidas adotadas em outro marco teórico”, assinalou Cristina, enfatizando que “todas as medidas adotadas até agora são repetições de políticas já implementadas, incluindo algumas delas aplicadas com o parlamento fechado pela ditadura (1976-1983)”.

“O novo presidente declara-se libertário, anarcocapitalista, inimigo do Estado, adepto da escola económica austríaca – corrente de pensamento que não se aplica em nenhum lugar do mundo. Sua proposta central durante a campanha eleitoral foi a dolarização. É um economista-showman na Casa Rosada”, sintetizou.

“QUADRO ECONÔMICO E SOCIAL

EXTREMAMENTE GRAVE”

Apesar disso, a líder acredita que seria incorreto classificar essa como uma nova “experiência neoliberal”. “As características do discurso e da práxis política do novo presidente, como a das suas equipes nas diferentes áreas, colocam o governo num patamar que vai além do constrangedor e o levam a um lugar que a Argentina nunca conheceu. Isto também acontece num quadro econômico e social extremamente grave”.

Prova desta orientação é que Milei “decidiu fazer uma desvalorização cambial de 118%”. “Esta medida duplicou, em apenas um mês, a taxa de inflação mensal que tinha atingido 12,7% em novembro, e disparou para 25,5% em dezembro (2023). Pudemos verificar, mais uma vez, a íntima relação entre o dólar e a inflação. Os preços dos combustíveis, alimentos, remédios, contas pré-pagas, aluguel, escolas, transporte, etc., aumentaram sem qualquer tipo de limite ou controle, aprofundando ainda mais a perda de poder de compra de salários e pensões a ponto de colocar em risco a tolerância social e agravar a violência resultante da insegurança cidadã nos centros urbanos mais populosos. A queda abrupta e a perda de renda nunca são gratuitas”.

Os preços dos combustíveis, alimentos, remédios, contas pré-pagas, aluguel, escolas, transporte, etc., aumentaram sem qualquer tipo de limite ou controle, aprofundando ainda mais a perda de poder de compra de salários e pensões”

“Na verdade, o plano diretor de Milei não difere muito daquele levado a cabo pela ditadura cívico-militar em termos de abertura indiscriminada da economia e de desregulamentação trabalhista, nem das privatizações da década de 1990. Se o plano da ditadura foi de abertura indiscriminada e o de Carlos Menem de privatização das empresas públicas, o de Milei acrescenta a estrangeirização da terra e dos recursos naturais através das duas figuras: o Regime de Incentivos aos Grandes Investimentos (RIGI) contemplado no projeto de ‘Lei Ônibus’ e a revogação do Regulamento Fundiário, lei imposta pelo Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70/2023”. Entre outras medidas, a Lei Ônibus e o DNU representam um pacote de maldades, agressões a direitos e à soberania nacional que entregam a economia argentina à sanha dos especuladores e à predação internacional. “Assim as coisas, caso o DNU continue vigente e se o RIGI, incluído no projeto de ‘Lei Ônibus’, for aprovado, a Argentina entraria desarmada num processo de estrangeirização irreversível, num século XXI que será caracterizado pela disputa pela propriedade da terra, da água e dos recursos naturais”, protestou.

MACRI INDICA MINISTROS E CARGOS DE MILEI

Na sua avaliação, o ex-presidente Maurício Macri (2015-2019), atualmente na articulação de Milei, indicando ministros e cargos, “não poderia continuar no governo”, pelas funestas implicações que suas decisões significaram em relação à dívida, “tanto pela magnitude do seu volume total com os detentores privados e com o FMI, quanto pelo retorno desse organismo multilateral ao seu papel de auditor da economia argentina”.

Como toda dívida em dólares com fundos de investimento privados, disse Cristina, este acordo também foi inédito. “O organismo multilateral concedeu ao governo Macri um empréstimo de 57 bilhões de dólares – o maior de toda a história do FMI, equivalente a 60% da sua capacidade de empréstimo, desembolsando 45 bilhões de dólares que foram utilizados, principalmente, para a fuga de capitais especulativos que haviam entrado na Argentina até esse mesmo ano”. Mais do que um empréstimo, esclareceu a dirigente, “foi uma fraude monumental”. “Nenhum desses 45 bilhões de dólares permaneceu na Argentina, porém não se sabe que o Judiciário tenha processado algum funcionário envolvido nessa operação. Isto reafirma o domínio do macrismo sobre este poder do Estado”, condenou.

“Com a chegada do FMI e a aplicação de suas receitas, desencadeou-se novamente um processo inflacionário na Argentina com perda do poder de compra de salários e pensões, o que finalmente fez fracassar a tentativa de reeleição de Mauricio Macri, tornando-se o primeiro presidente que tenta e não consegue”.

Cristina convocou a uma reflexão sobre os riscos existentes no “poder executivo nacional (Milei-Caputo) reendividar a Argentina em dólares, sem limites e sob jurisdição estrangeira sem passar pelo Congresso”. “Poderá reestruturar a dívida externa sem a obrigação de melhorar o montante, prazo ou juros, serão autorizados a liquidar o FGS (Fundo de Garantia de Sustentabilidade) da ANSES (Administração Nacional de Seguridade Social) e privatizar o patrimônio do Estado. Se estas reformas forem aprovadas, mais do que uma autorização legal, o Congresso estaria concedendo um privilégio ao presidente e ao seu ministro da Economia”.

Reconheceu que, infelizmente, o presidente Alberto Fernández, do qual era vice – no governo que se seguiu – “não pôde ou não soube cortar este verdadeiro nó górdio da economia argentina”. O fato é que Fernández, em confronto com os setores nacionalistas mais firmes, “não só validou o escandaloso empréstimo obtido pela administração de Macri, mas condenou o governo a uma espécie de agonia ao ser forçado a implementar as políticas ditadas pelo organismo multilateral que ordenou, entre outras coisas, uma desvalorização da taxa de câmbio influenciando a taxa de inflação, alimentando-a de volta a um círculo vicioso e letal”.

ACORDO COM O FMI FOI DIVISOR

DE ÁGUAS NO PERONISMO

Em relação aos problemas internos do bloco peronista da Frente de Todos, Cristina destacou que no ano de 2023 e em pleno processo eleitoral presidencial, o então ministro da Economia e candidato da coligação governamental, Sérgio Massa, “foi obrigado pelo staff do FMI a desvalorizar a moeda” no dia seguinte às eleições primárias. “Como consequência, a inflação mensal disparou para dois dígitos – recorde que não era observado desde a segunda híper, em 1990 – e a inflação anual atingiu 211%, confirmando mais uma vez que a inflação, na Argentina, está indissociavelmente ligada ao dólar e não ao déficit fiscal”.

“Mas também é verdade que a assinatura do acordo com o FMI foi um divisor de águas. Com a convicção de que as condições do acordo iriam sangrar o governo e condenar o país, o nosso setor manifestou o seu repúdio com profundo respeito pelas instituições: o então chefe do bloco Frente de Todos na Câmara dos Deputados decidiu renunciar ao cargo como seu presidente, para não atrapalhar a construção da maioria necessária à aprovação do acordo, manteve sua filiação ao bloco e à coalizão de governo. É preciso esclarecer que não só o presidente do bloco de deputados votou contra o acordo com o FMI, mas também legisladores da Frente de Todos em ambas as câmaras”.

“CRESCIMENTO DA ECONOMIA É COM VALORIZAÇÃO DO TRABALHO”

De forma detalhada, Cristina apontou gráficos que demonstram como “o crescimento da economia argentina e sua possibilidade de desenvolvimento com trabalho bem remunerado só foram alcançados com um padrão de acumulação apoiado em um modelo de industrialização com viés exportador com valor agregado, com baixos volumes de dívida externa ou com uma administração correta e responsável dos mesmos”. Isso não significa negar a necessidade de realizar correções na estrutura produtiva e melhorar as condições trabalhistas, asseverou.

“O volume de investimento estrangeiro direto durante a década de 90 é explicado pelos dólares provenientes da venda de empresas estatais, enquanto o período de maior Investimento Estrangeiro Direto (IED), que vai de 2003 a 2015, é explicado pela aplicação de um padrão de acumulação baseado em produção industrial, geração de valor agregado e desenvolvimento de um mercado interno forte por meio de altos salários, sem venda de ativos estatais, com recuperação de empresas e ativos de geração como Ar-Sat (que detém os direitos exclusivos para operar e comercializar satélites) e o FGS, juntamente com o desenvolvimento de um importante plano federal de infraestrutura, além de pagar a dívida externa e cancelar a do FMI. Não foi mágica, foi política”, esclareceu.

“Finalmente e além das ideias, propostas e debates que nós, argentinos, possamos ter”, defendeu Cristina, “há questões que devemos ser taxativos: a dolarização significaria perder para sempre a possibilidade de desenvolvimento do nosso país; dar o aval para que Milei e Caputo continuem endividando o país em dólares, através da revogação das leis de Sustentabilidade da Dívida e da eliminação das restrições existentes à reestruturação da dívida externamente, significaria uma verdadeira catástrofe de natureza irreparável e a responsabilidade daqueles que foram eleitos para governar e legislar vai exigir a construção de um sistema de acordo parlamentar”.

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