Gabriela Rivadeneira, política do Equador, país de economia dolarizada, afirma que proposta defendida por candidato ultraliberal da Argentina acarreta em perda de soberania e aniquilação da arquitetura financeira.
Por Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva de Buenos Aires (Argentina)*
“É a pior decisão que se pode tomar para qualquer economia nacional. A perda de parte da soberania na gestão da moeda é algo que aniquila a arquitetura financeira soberana de qualquer país, como aconteceu no Equador”, definiu a ex-presidente da Assembleia Nacional equatoriana Gabriela Rivadeneira, cujo país tem economia dolarizada, sobre o plano do candidato ultraliberal à presidência da Argentina, Javier Milei (Liberdade Avança).
Pouco mais de 35 milhões de cidadãos argentinos estão habilitados a escolher quem conduzirá o país já a partir de dezembro. As pesquisas apontam três candidaturas com chances concretas de irem ao segundo turno: Sergio Massa (União pela Pátria), Patrícia Bullrich (Juntos pela Mudança) e Javier Milei. É preciso 45% dos votos ou 40% e uma diferença de 10 pontos percentuais em relação aos demais candidatos para liquidar o pleito já no primeiro turno neste domingo (22/10).
Destacada liderança do período vivido pelo Equador sob os governos do ex-presidente Rafael Correa, entre 2008 e 2017, quando foi a deputada mais votada da história do país, Rivadeneira avalia, em entrevista exclusiva, que a proposta de dolarização defendida por Milei é insustentável e lista argumentos que desmontam o mantra ultraliberal do candidato, segundo os quais dolarizar a economia resolveria o grave problema da inflação que atinge a Argentina.
Vivendo no México desde 2020, quando optou pelo exílio por conta da perseguição imposta pelo governo de Lenín Moreno, Rivadeneira esteve no Espaço Memória e Direitos Humanos (ex-ESMA – Escola de Mecânica da Armada), em Buenos Aires, neste sábado (21/10). Ao lado de personalidades da luta por direitos humanos de toda a região, ela participou do painel “O futuro democrático da Argentina e da região: as novas demandas e desafios cidadãos”.
Após o evento, em entrevista concedida aos jornalistas brasileiros Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva, da agência ComunicaSul, Rivadeneira falou sobre a eleição argentina e também a situação do Equador, que elegeu, no último domingo (19/10), Daniel Noboa, permitindo que a direita siga governando.
Nesta conversa, ela também refletiu sobre temas como integração regional e traçou paralelos de semelhanças e diferenças entre o primeiro período de hegemonia de governos progressistas na América Latina e a atualidade.
Leia, a seguir, a entrevista na íntegra:
ComunicaSul: Tivemos este evento que é importante pelo resgate da memória, de tudo o que foi vivido em um lugar como a ex-ESMA. Poderia compartilhar um pouco suas impressões em relação a essas eleições, onde se joga justamente a questão da memória, inclusive com o questionamento sobre se foram 30 mil os desaparecidos na ditadura?
Gabriela Rivadeneira: Realmente é paradoxal, pois enquanto sentimos que estamos avançando e que a humanidade está avançando, na prática há um retrocesso muito forte. A ultradireita e a direita, neofascista ou fascista, como você queira determinar, usa bastante o expediente do negacionismo. E o negacionismo é justamente evitar não só que os que viveram coloquem em dúvida sua própria memória, mas também a política de Estado da memória.
O que estamos deixando para as novas gerações quando falamos de algo passado que eles não vivenciaram diante de novas necessidades? Ou seja, é um momento extraordinário onde essa direita compreendeu bem que o negacionismo e todas as formas de retrocesso mercantilizadas podem transformar imaginários com eficiência.
Trazer o debate sobre a democracia, a importância do que é também a memória nessas construções sociais a partir de um dos maiores centros de tortura e desaparecimentos da região, sem dúvida tem sido um desafio também para nós diante do que vai acontecer nas próximas horas nas eleições argentinas.
ComunicaSul: No ano passado, fechamos o calendário eleitoral com Gustavo Petro vencendo na Colômbia e Lula derrotando Bolsonaro no Brasil. Havia toda essa esperança de uma retomada e de um fortalecimento de uma maioria progressista na região. Agora tivemos a direita vencendo novamente no Equador, com Daniel Noboa, e podemos ter um cenário muito complicado na Argentina, se Milei vencer. Como você avalia o cenário do ponto de vista da integração regional?
Gabriela Rivadeneira: Eu acredito que as características desse segundo ciclo progressista, ou o que tem sido denominado como segundo ciclo, diferem muito do primeiro em vários aspectos.
Às vezes tentamos, naturalmente, fazer uma comparação do que foi o primeiro e o que está sendo o segundo ciclo. Mas o primeiro ciclo, além de ter maiorias parlamentares que garantiam um pouco mais de governabilidade, foi o momento em que mais se avançou nos processos de integração. Mesmo presidentes como Iván Duque, da Colômbia, estavam integrados na Unasul [União das Nações Sul-Americanas], ou seja, havia outra lógica de integração levada por uma maioria.
Hoje somos até mais países de tendência de esquerda ou progressista, mas é o momento em que estamos mais separados, em que a integração não tem conseguido se consolidar. O México contribuiu com a presidência pro-tempore da Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], Lula tem se empenhado a partir do BRICS [inicialmente formado inicialmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], trazendo a Argentina e também analisando a solicitação de outros países para entrar no grupo. A Unasul conta com muitos pronunciamentos a favor de retomá-la, mas continua paralisada.
Ou seja, não estamos avançando e é porque a integração também acontece quando entendemos que podemos tratar os problemas comuns de maneira comum. Cada país está concentrado em tentar resolver suas próprias problemáticas que já são grandes. O Equador, por exemplo, hoje é o país mais inseguro do continente. Em 2017, éramos o segundo mais seguro. Hoje somos o mais inseguro, com mais de 5 mil mortes violentas registradas até agora este ano.
Mas também com atentados políticos que no Equador e na política equatoriana não existiam no passado. [Foram] 20 atentados, dos quais oito terminaram em assassinato, incluindo um candidato presidencial.
Colocamos todo esse histórico para dizer que se [o presidente mexicano] Andrés Manuel López Obrador convocar para tratar de forma coletiva os temas de inflação ou migração; se Lula der o passo adiante com o Brics, o Banco do Sul, que para nós é fundamental, esses feitos podem ser não apenas exposições, mas tarefas concretas de integração que permitam aos nossos povos ter soluções.
O Equador deu agora um passo para trás, não sabemos como a política internacional vai ser guiada porque é também um governo empresarial cujo chanceler, cujos ministros apresentados inicialmente são os gerentes das empresas de Noboa, em seu grande consórcio. Ou seja, essa vai ser a dinâmica: o jogo dos importadores, exportadores e como isso será representado na política pública.
Temos que ver que existem países, insisto, com os quais temos que avançar em temas comuns. Um dos temas, por exemplo, seria o tratamento conjunto da dívida externa. Há coisas que podemos tratar, tomara que cada vez haja uma maior decisão, mas pelo que vemos, e nesses jogos de idas e vindas dentro da democracia liberal ou representativa, com essas idas e vindas entre direitas e esquerdas, está muito difícil consolidar maiores processos de integração.
ComunicaSul: Para nós, do Brasil, é um pouco estranho tudo o que está acontecendo na Argentina com a questão da dolarização. O Equador já passou por isso. Você poderia compartilhar suas impressões a respeito, sobre como a economia se movimenta após a dolarização, se isso afeta o povo e de que maneira?
Gabriela Rivadeneira: Na verdade, aqui na Argentina, em cada entrevista que me fazem, eles perguntam isso. Dizem ‘você que é equatoriana, como o Equador vivencia a dolarização?’.
Bem, a dolarização foi adotada em meio a uma crise econômica brutal. O feriado bancário de 1999 fez com que o Estado injetasse recursos públicos para salvar os bancos privados da falência. E isso causou um tremor que levou à decisão de entrar em um processo de dolarização.
O que nós já dizíamos época, e continuamos dizendo agora, é que é a pior decisão que se pode tomar para qualquer economia nacional. A perda de parte da soberania na gestão da moeda é algo que aniquila a arquitetura financeira soberana de qualquer país. No Equador, isso foi feito.
Uma vez adotada a dolarização, você precisa realmente implementar políticas que a mantenham. E isso é ainda mais complexo do que entrar no processo de dolarização em si.
O que isso tem a ver com a vida cotidiana das pessoas? Aqui, já peguei táxis onde as pessoas dizem: ‘Se eu tenho 500 pesos, então eu vou ter 500 dólares’. Uma conversão simples e básica. Não, negado! Definitivamente falso!
Quando você entra em um processo de dolarização, primeiro é afetado pela flutuação do dólar no mercado internacional.
Segundo ponto: você não vai resolver o problema da inflação com a dolarização na Argentina.
Em terceiro lugar, você não imprime dólares. Portanto, você tem que comprar dólares dos Estados Unidos. Não é o seu banco que está fornecendo. Ele é anulado. Então, você compra dólares. E diante disso, em casos como o equatoriano, que está entre a Colômbia e o Peru, que têm suas próprias moedas e podem ‘jogar’ com ela, o Equador não pode fazer isso. Isso reduz a competitividade regional.
Mas além disso, quem poderia imaginar esse tema, em pleno século 21, quando o Brics e outras instâncias mundiais estão falando sobre negociação e comercialização usando uma cesta de moedas locais, fora do dólar? Quem poderia imaginar que, diante dessa geoeconomia, a dolarização poderia ser uma solução quando o dólar está em debate em nível mundial?
Espero que compreendamos tudo isso. Eu acredito que a mídia corporativista faz o que precisa fazer nesse sentido, e eles cumprem sua tarefa perfeitamente bem ao criar imagens que são totalmente falsas e que podem levar facilmente à ruína, não apenas de uma economia, mas de uma sociedade. Esperamos que isso não ocorra na Argentina.
ComunicaSul: Fale um pouco sobre como você vê o trabalho para que o tema da integração chegue efetivamente às pessoas? Que não seja apenas algo das elites intelectuais, dos altos níveis diplomáticos, mas algo sobre o qualas pessoas possam se apropriar?
Gabriela Rivadeneira: Eu acredito que isso tem a ver com a pedagogia popular em geral. E o que Andrés Manuel [López Obrador] faz todas as manhãs nas coletivas de imprensa e o que nossos presidentes fazem ao tentar se comunicar de maneira diferente é o que temos que fazer para que os povos compreendam adequadamente a integração. Mas isso tem que ser feito com fatos reais.
Por exemplo, quando nós, da Unasul, economizamos bilhões de dólares na região por meio da compra conjunta de medicamentos, da lista básica de medicamentos, isso beneficia diretamente nossos povos.
Quantos de nós somos capazes de fazer com que as pessoas saibam disso? Isso já está relacionado com essa pedagogia popular.
Ou quando dizemos “não mais militares ou policiais na Escola das Américas”, porque estamos criando nossa própria escola, que, aliás, ficava no Brasil.
Essa era uma vontade não apenas de compreender que as forças públicas têm outro papel nas sociedades do século 21, mas também de confrontar novamente a política do terror. Ou seja, quando usamos a pedagogia popular para que os povos debatam, compreendam, se informem, estamos dando um passo importante para que a integração seja verdadeiramente não apenas uma integração diplomática, mas uma integração dos povos.
Mas isso é um desafio de construção a médio e longo prazo. É preciso começar, sim. E é por isso que devemos fazê-lo.
*A reprodução deste conteúdo é livre e gratuita, desde que citadas a fonte, a publicação original no Opera Mundi e a lista de entidades apoiadoras da cobertura
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