Dom Mário e dona Fresia: a dura face do “fake news” de Guedes

 

“Acordo às cinco e meia da manhã e faça chuva ou faça sol, frio ou calor, tenho que tirar minha senhora da cama para levá-la comigo ao trabalho. Me dá muita pena, porque a vejo dormindo e não queria, mas não tem outro jeito. O valor da aposentadoria é muito baixo e nada pode contra o valor dos remédios para o Alzheimer. Como não tenho com quem deixá-la, coloco sua roupa, escovo seus dentes, a levo no sanitário e a limpo porque ela é completamente dependente. Eu cuido dela sozinho, porém a situação ficou muito dura e isso me deixa bastante estressado. Já caiu do ônibus, precisa fazer suas necessidades em um recipiente. São sete medicamentos todo dia. Não aguento mais. Às vezes me dá vontade de nos suicidarmos”.

Esta comovente história do chileno dom Mário Nuñez, chofer de um micro-ônibus aos 71 anos, e de sua senhora, dona Fresia, de 65 anos, que o acompanhava em sua jornada diária de dez a doze horas com “o olhar perdido no silêncio” de sua doença degenerativa, tornou-se bastante conhecida na América Latina. Caiu na rede e transformou-se em viral, expondo a dimensão e o sentido desumano do regime de capitalização aplicado por Pinochet no Chile, tão ardorosa quanto ridiculamente defendido por Paulo Guedes na Câmara Federal na última quarta-feira.
Para Víctor Díaz, administrador da linha Liserco – que une as cidades de La Sirena e Coquimbo -, em que Mário Nuñez dirige, “ele surpreende pela sua demonstração de amor pela companheira e responsabilidade pelo trabalho”. Victor diz que a miséria é o dia a dia de um grande número de idosos chilenos, “já que uma vez que as aposentadorias não cobrem os gastos, os idosos têm que seguir trabalhando”. No caso da empresa, explica, havendo uma determinação para que ninguém mais além do chofer permanecesse no veículo, se fez uma exceção, autorizando “dom” Mario a ficar com dona Fresia.
De acordo com o Censo 2017, dom Mario faz parte do grupo de mais de um milhão e 300 mil idosos com mais de 65 anos que ainda está trabalhando, apesar de ter idade para o merecido descanso. O Instituto Nacional de Estatísticas (INE) aponta que enquanto em 2015 eles representavam um pouco mais de 19% do total, em 2017 já eram 21% dos quase três milhões de idosos. E o percentual vai num crescendo diante do arrocho das aposentadorias.
Um dos quatro filhos de Fresia, Rodrigo Batista, de 37 anos, lembrou que os idosos têm familiares passando igualmente por dificuldades, o que limita – e muitas vezes impede – o apoio necessário. “Há mães, pais e filhos com doenças que necessitam de cuidado e de especialistas. Este é o caso da minha mãe que, felizmente, sensibilizou todo o Chile e repercutiu em outros países”, agradeceu.
 
AS MENTIRAS DA MÍDIA PRIVADA
 
A comoção causada na internet fez com que rapidamente jornais e emissoras de rádio e televisão do Chile buscassem fazer a sua própria “interpretação” do caso, com o objetivo de blindar – com inconfessáveis interesses econômicos – as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) e sua política de arrocho das aposentadorias. Os mesmos interesses de uma mesma mídia, aqui e lá.
“É inquestionável que os grandes meios de comunicação privados manipulam grosseiramente a realidade, divulgam mentiras e escondem verdades para defender os atropelos nos direitos realizados por essas administradoras, dominadas por bancos e especuladores”, apontou Luis Mesina, coordenador da organização No + AFP (Chega de AFP).
O relato sobre o drama do casal foi tornado público no começo de novembro do ano passado e logo foi resolvido. Sensibilizada, a Fundação católica Las Rosas se ofereceu para acolher a senhora de dom Mario. O custo médio da internação nestas instituições é de 750 mil pesos mensais (US$ 1.124). A aposentadoria de dona Fresia é de 109 mil pesos (US$ 163). As estatísticas apontam que há 200 mil chilenos com Alzheimer.
Entre os trabalhadores chilenos que conseguiram se aposentar – afinal há muitos que passaram longo tempo desempregados ou na informalidade, sem, portanto, contribuir – quatro entre cinco está recebendo menos do que o salário mínimo, correspondente a 301 mil pesos (US$ 451). Pior, quase a metade, 44%, está ganhando abaixo da linha da pobreza, míseros 150 mil pesos (US$ 225) ou menos.
Esta é a realidade, nua e crua, resultado direto da privatização do sistema previdenciário chileno comandada pelos Chicago boys, em 1981, entre os quais se encontrava o senhor Paulo Guedes, para quem esse escárnio não passa de “fake news”. Isso tudo durante a ditadura pinochetista, mantida entre 1973 a 1990, tendo como base a tortura, o assassinato e o desaparecimento de dezenas de milhares de chilenos, além  do envio de pelo menos 200 mil ao exílio. Mas para Bolsonaro, “Pinochet fez o que tinha que ser feito”. Aliás, “devia ter matado mais gente”.  

 

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