Monica, Viglietti e Leonardo: liberdade para os camponeses de Curuguaty

Leonardo Wexell Severo

Era tarde da noite de segunda-feira, 30 de outubro, quando vi a postagem do meu irmão argentino Mariano Vázquez com a foto do cantautor uruguaio Daniel Viglietti empunhando comigo e minha companheira Monica a bandeira da liberdade para os camponeses paraguaios de Curuguaty. Vítima de uma complicação cirúrgica, Viglietti havia nos deixado.
Recordei do abraço e as lágrimas brotaram. “Faço questão de levantar esta bandeira. É uma questão de justiça para aqueles agricultores inocentes jogados na prisão e também para o Paraguai que, com uma das maiores concentrações de terras do mundo, exporta grãos com milhares de famintos”, desabafou. Falou sobre a vontade de voltar a cantar no Brasil e sorriu quando, faceiro como um fã, lhe lembrei de outras quatro oportunidades em que havíamos estado juntos.
Nosso último encontro, junto com as palavras, aconteceu na saída da apresentação musical em Vallegrande, na Bolívia, logo depois do entusiástico discurso de Evo Morales no encerramento das comemorações dos 50 anos da queda em combate do comandante Ernesto Che Guevara naqueles montes. Mais do que sua melodiosa voz, Viglietti havia irradiado uma mensagem de esperança, profunda, fecunda, anti-imperialista. Uma vibração única, uma harmonia cheia de encanto, sentida e repassada das avós até as crianças de colo.
As lembranças vêm como disparos, em sequência. Recordo de uma entrevista concedida a mim e à jornalista Vanessa Silva, em Caracas, onde foi apoiar a Revolução Bolivariana e o presidente Hugo Chávez, da mesma forma que já havia feito com os sandinistas na Nicarágua. Nos contou de seu compromisso com a integração dos nossos países e povos tomado pela mesma naturalidade com que dedilhava o violão: “Sempre senti que tinha duas pátrias. Uma, a de nascimento, o Uruguai, e outra pátria a latino-americana que gosto de chamar de “nuestroamericana” (nossamericana). Inventei esta palavra a partir da expressão de José Martí, que contrapunha a Nossa América, a América deles, do império do Norte. Percebi que as fronteiras são artificiais além da língua e da cultura, que têm seu peso em diferentes regiões, mas estas fronteiras, as aduanas, os escritórios de imigração são invenções feitas para nos dividir. Quando entro no Brasil, na Venezuela, em Cuba ou em tantos países progressistas, sinto que é irreal precisar de passaporte. A canção não tem de pedir vistos para entrar em lugar nenhum. A música entra naturalmente e, quando é necessário, se traduz, como fiz com algumas canções do meu amigo Chico Buarque”.
Sua obra tem o dom único de mesclar a música clássica com o folclore uruguaio e latino-americano, musicar poemas do colombiano César Vallejo, do cubano Nicolás Guillén, do espanhol Federico García Lorca e tantos outros gigantes. Sua grandiosa elaboração tem projeção mundial, sendo interpretada por diamantes de várias nacionalidades como os chilenos Víctor Jara e Isabel Parra, o espanhol Joan Manuel Serrat, o venezuelano Alí Primera e a argentina Mercedes Sosa, sem falar na mágica parceria com o poeta uruguaio Mario Benedetti.
Identificado com as lutas sociais de seu tempo, Viglietti reverberou pelo planeta a mobilização pela reforma agrária em A desalambrar (A desaramar, Arrancar as cercas): “Eu pergunto aos presentes se não se puseram a pensar, que esta terra é nossa e não de quem tenha mais/ Eu pergunto se na terra, nunca haverá pensado você, que se as mãos são nossas, é nosso o que nos dê… A desaramar, a desaramar, que a terra é tua e daquele, de Pedro, Maria, de João e José”. E ia direto ao assunto: “Se molesto com meu canto alguém que anda por aí, lhe asseguro que é um gringo ou um dono do Uruguai”.
Como sou gaúcho da fronteira, nascido próximo ao Uruguai e à Argentina, sempre fui cativado por sua mensagem da Pátria Grande, profundamente vinculada ao seu canto de igualdade e justiça, tão candente quanto presente na letra do “Chueco (“torto”) Maciel”. Este era o apelido do jovem infrator Julio Nelson Maciel Rodríguez, abatido pela polícia uruguaia em junho de 1971, em meio à violência que sacudiu o país vizinho e desembocou no golpe de 1973. Inconformado com a praga da fome, da miséria e do desemprego que abatia e esmagava a periferia, Maciel – tal qual os guerrilheiros do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros contra a ditadura – roubava os endinheirados, como um Robin Hood de verdade, para distribuir os frutos entre os seus. Nos versos da canção com que Viglietti o imortalizou, vejo a síntese maior de sua mensagem, mais do que imprescindível nestes tempos sombrios de neoliberalismo e neocolonialismo: “Os tortos se juntem bem juntos, bem juntos os pés, e logo caminhem buscando a pátria, a pátria de todos, a pátria Maciel, esta pátria torta que não vão torcer com duras correntes, os pés todos juntos vamos vencer”.
Daniel vive!

 

Pátria livre! Venceremos!

 
 
A Desalambrar Daniel Viglietti
Yo pregunto a los presentes
Si no se han puesto a pensar
Que esta tierra es de nosotros
Y no del que tenga mas
Yo pregunto si en la tierra
Nunca habrá pensado usted
Que si las manos son nuestras
Es nuestro lo que nos den
A desalambrar A desalambrar
Que la tierra es nuestra
Tuya y de aquel
De Pedro y Maria
De Juan y Jose
Si molesto con mi canto
Alguno que venga a oír
Le aseguro que es un gringo
O un dueño de este país

 

A desalambrar A desalambrar
Que la tierra es nuestra
Tuya y de aquel
De Pedro y Maria
De Juan y Jose
 
 
 

El Chueco Maciel

 

Daniel Viglietti

Por qué tu paso dolido
del norte hacia el sur,
el pie que no supo,
el pie que no supo
de risa o de luz?

Tu padre abandona la tierra
de Tacuarembó
buscando su tierra,
una tierra suya,
y nunca la halló.

Encuentra la triste basura
donde viven mil,
encuentra la muerte,
encuentra el silencio
de aquel cantegril.

El Chueco, redondos los ojos
y sin pizarrón,
mirando a la madre,
mirando al hermano,
aprende el dolor.

La luna, semana a semana,
lo ha visto vagar
armado de espuma,
buscando una orilla
como busca el mar.

El Chueco no sabe de orilla
ni sabe de mar,
él sabe de rabia,
de rabia que apunta
y no quiere matar.

Asalta el banco y comparte
con el cantegril,
como antes el hambre,
como antes el hambre,
comparte el botín.

Así les canto la historia
del Chueco Maciel,
suena la sirena,
suena la sirena,
ya vienen por él.

Los diarios publican dos balas,
son diez o son mil,
mil ojos que miran,
mil ojos que miran
desde el cantegril.

El chueco era un uruguayo
de Tacuarembó,
de paso dolido,
de paso dolido,
de paso dolido.

Los chuecos se junten bien juntos,
bien juntos los pies,
y luego caminen buscando la patria,
la patria de todos, la patria Maciel,
esta patria chueca que no han de torcer
con duras cadenas los pies todos juntos
hemos de vencer.

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