Em estreia do programa Somos América, nesta terça-feira (29), debatedores uruguaios avaliam que vitória progressista deve reconstruir relações com o continente e políticas voltadas para a mídia

A eleição presidencial no Uruguai será decidida em segundo turno, marcado para 24 de novembro. A vitória de Yamandú Orsi, candidato pela Frente Ampla, com pouco mais de 43% dos votos válidos, não foi suficiente para liquidar a parada no domingo (27/10). O candidato progressista enfrentará Álvaro Delgado, do Partido Nacional, que representa a continuidade da direita no poder e recebeu cerca de 27% dos votos. O comparecimento às urnas foi de 89%.

Além de escolher o novo mandatário, o eleitorado uruguaio também definiu a nova composição da Câmara de Deputados e do Senado. A população ainda teve a oportunidade de votar em dois plebiscitos, de forma simultânea: um que dizia respeito à reforma da previdência, proposto pelo movimento sindical, e outro sobre operações policiais noturnas – ambos rejeitados.

Para explicar o xadrez eleitoral e também entender o que está em jogo em termos de integração regional e de democratização dos meios de comunicação, o programa Somos América recebeu os seguintes convidados direto do Uruguai: Melissa Giles, diretora da Rádio Horizonte FM e representante da Associação Mundial das Rádios Comunitárias na América Latina e Caribe – Amarc AL); e Pablo Kunich, comunicador e fundador da Alba TV.

A conversa também contou com a participação de Fabián Werner (diretor do Sudestada e presidente do Centro de Arquivos e Acesso à Informação Pública – CaInfo), que mediou o debate em parceria com Felipe Bianchi, jornalista do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Fabián Werner no Seminário Internacional de Comunicação para a Integração, em São Paulo. Foto: Priscila Ramos)

Coalizão com mais de 50 anos de história e que reúne forças partidárias à esquerda, a Frente Ampla obteve maioria no Senado – a posse ocorre no dia 15 de fevereiro. “Isso dá uma carta importante à Frente Ampla para a disputa em segundo turno, já que a maioria no Senado significa poder indicar cargos importantes, aprovar candidatos para cargos militares e trabalhar com um pouco mais de tranquilidade as negociações que virão com o próximo governo”, explica Fabián Werner.

O campo progressista não conseguiu a maioria na Câmara dos Deputados – faltaram dois votos para que a FA obtivesse a maioria. “Por isso”, conta Fabián, “terá que negociar com os demais partidos para conseguir a aprovação de alguns projetos importantes, como a Lei do Orçamento”.

“Discreto” no primeiro turno, conforme detalha Pablo Kunich, Yamandú Orsi deve aprofundar o debate no âmbito de ideias e propostas no período derradeira de campanha. “Uma das chaves para que o candidato favorito nas pesquisas vá mais fundo nessa disputa é o fato de ter obtido maioria no Senado uma boa representação na Câmara dos Deputados, que está bastante equilibrada. Esse fator garante governabilidade à Frente Ampla, caso vença”.

As mulheres na eleição

Militante feminista, Melissa Giles destaca a lei de cotas para que haja candidaturas femininas no país. “Apesar disso, a formação do Senado e na Câmara dos Deputados continua a ser predominantemente masculina”, pondera. “Entre 30 senadores, apenas nove são mulheres. Na Câmara dos Deputados, dos 99 candidatos eleitos, apenas 26 são mulheres. “São dados relevantes para trazermos ao debate, não somente no Uruguai, mas em todo o continente. É um tema urgente”, afirma.

Melissa Giles dirige a Rádio Horizonte FM, em Paysandu-URU. Foto: Instagram @radiohorizonte1063

A luta da mídia alternativa e comunitária no “paisito”

Dirigente da Rádio Horizonte FM, localizada em Paysandu, Giles recorda a aprovação de uma legislação voltada às rádios comunitárias em 2008, durante o governo de Tabaré Vázquez. “ A partir da aprovação dessa lei, as rádios comunitárias começaram a ser regularizadas e deixaram de ser piratas. Ainda assim o tratamento dado às mídias comunitárias é muito discrepante em relação à mídia comercial”, diz. 

Segundo a radialista, os meios de comunicação privados seguem sendo favorecidos no Uruguai, seja com a repartição do bolo de publicidade oficial ou com privilégios na política de outorgas de concessões para funcionar.

Para Fabián Werner, é notório o esforço empreendido pela Frente Ampla, desde 2005, para enfrentar a questão da regulação dos meios de comunicação. “Conseguimos aprovar uma lei sobre os serviços de comunicação audiovisual muito avançada, mas o problema é que essa lei nunca foi aplicada em sua totalidade”, opina. “Ao mesmo tempo em que a lei garantia uma divisão mais democrática do espectro radioelétrico (por onde transitam as ondas de rádio e TV), o Conselho que tinha como função fazer cumprir essa ‘desconcentração’ midiática nunca foi implementado”.

A mídia dominante jogou papel crucial para derrotar a legislação, de acordo com Fabián. “Obviamente a mídia pressionou para que a lei fosse declarada inconstitucional. Foram apresentados 27 recursos de inconstitucionalidade contra a Lei de Meios. Um recorde absoluto na história do Uruguai”, relata.

A primeira coisa que Lacalle Pou faz ao vencer a eleição é iniciar o desmonte da lei. “A legislação que ocupou seu lugar foi praticamente escrita de punho próprio pelos barões da mídia uruguaia”, denuncia Fabián.

Questão pendente em toda a região

Para Pablo Kunich, a questão da democratização da comunicação e do enfrentamento ao poder midiático é uma tarefa incompleta da onda de governos progressistas que o continente viveu nas décadas passadas. “Durante esse período de maioria progressista na região, tivemos avanços muito significativos, principalmente em termos de distribuição de renda. O progressismo fez as pessoas viverem melhor. Mas também foi nítida a dificuldade em abordar questões estruturais”.

“Não critico como alguém olhando de fora, reconheço que é difícil”, argumenta Pablo. “Acho que a esquerda em geral entende, sim, a importância de discutir comunicação. O que falta é saber o que fazer concretamente. Quando fizemos, as derrotas foram muito, muito rápidas, como nos exemplos de Uruguai e Equador, com leis judicializadas; ou no Equador, cujo processo de acúmulo foi apagado em toque de caixa. Não basta que tenhamos as propostas. Acredito que devemos gerar a massa crítica e capacidade de mobilização – de rua, mas também intelectual”.

Os horizontes da integração regional

Apesar do alinhamento com os interesses dos Estados Unidos, a política internacional do governo uruguaio foi bastante errática, na avaliação de Pablo Kunich. “Lacalle Pou ignorou o Mercosul, colocando-o quase como um fardo para a integração. Também especulou sobre um acordo de livre comércio com a China, que para muitos analistas ficou no nível da fantasia e que realmente não teve nenhum impacto depois”, elucida. 

Se a Frente Ampla voltar ao governo, sem dúvida retomará a agenda da integração latino-americana, aposta Pablo. “Possivelmente isso ocorra sem grandes novidades, mas sim no sentido de re-ocupar espaços, o que é um avanço significativo considerando os últimos anos”.

Assista à íntegra do programa, produzido pelo Barão de Itararé em parceria com veículos e organizações latino-americanas e caribenhas:

 

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