Livro do economista Alejandro Vanoli, ex-presidente do Banco Central e da Comissão Nacional de Valores da Argentina, denuncia “máquina de mentiras e desinformação” montada para justificar o retrocesso do governo Macri com o “aprofundamento neoliberal” feito via desregulamentação, privatização e desmonte do Estado público para os abutres
 
Leonardo Wexell Severo

 
No seu livro “Pátria ou dólar – Banco Central, corporações e especulação financeira”, o economista argentino Alejandro Vanoli avalia os governos peronistas de Néstor Kirchner (2003-2007) e de Cristina Krichner (2007-2015), dando inúmeros exemplos de recuperação da soberania e da dignidade a partir do “enfrentamento ao poder corporativo nacional e multinacional”.
Ex-presidente dos dois principais organismos para a regulação monetária e financeira da Argentina, o Banco Central e a Comissão Nacional de Valores (CNV), Vanoli aborda casos emblemáticos. Entre outras medidas, durante sua gestão na CNV, ocorreu a reestatização/nacionalização das Jazidas Petrolíferas Fiscais (YPF) – a Petrobrás do país vizinho – que havia sido “vendida” por Carlos Menem à espanhola Repsol, caso que abordaremos nesta página.
Na avaliação do patriota argentino, neste momento de “aprofundamento neoliberal” feito pelo governo de Mauricio Macri, “é preciso ajudar a pensar, debater e atuar, para clarear a máquina de mentiras, desinformação, ocultamento e confusão de tantos cidadãos, e assim podermos reverter o mais rápido que se possa o retrocesso sofrido desde o final de 2015”.
Pelas suas consequências políticas, econômicas e ideológicas para a integração e o desdobramento da luta no continente, é imprescindível fazer o paralelo com o leilão do Campo de Libra, no pré-sal, em 2013, entregue ao cartel estrangeiro encabeçado pela Shell. Assim como refletir sobre o significado da alavancagem de um Henrique Meirelles, presidente internacional do BankBoston, à presidência do Banco Central do Brasil (2003-2011). Parafraseando Evita Perón, “sobre as cinzas dos traidores, construiremos a Pátria dos humildes”.
Abaixo, trechos do livro de Vanoli.
YPF. Um pouco de história
Alejandro Vanoli
Jazidas Petrolíferas Fiscais (YPF). Um símbolo do nosso país. Foi criada em 1922 durante a presidência­ de Hipólito Yrigoyen a pedidos do General Enrique Mosconi, que foi seu primeiro diretor.
Durante décadas a YPF se desdobrou em todo o país, conciliando seu aporte ao abastecimento energético com o desenvolvimento nacional. Na ditadura militar foi endividada sem uma correspondência com o investimento, gerando as condições para a sua privatização em 1992.
A YPF foi transformada em sociedade anônima. Em 1993, o Estado mantinha 20% das ações e a ação de ouro (golden share- que dá direitos especiais a seu possuidor, mesmo sendo minoritário) e 12% ficavam em mãos dos estados. O setor privado era proprietário de 46% do pacote acionário, composto por bancos e fundos de investimento de diversos países. Em 1998, o setor privado já possuía quase 75% das ações, ainda que o Estado mantivesse a ação de ouro.
Finalmente, a privatização foi concluída em 1999, quando o Estado argentino vendeu à Repsol 14,99% das ações da YPF. Uma venda sem precedentes. Nunca um país e um Estado entregaram seus recursos naturais. Nem sequer o Chile ultraliberal de Pinochet privatizou o cobre. Nem os países mais privatistas venderam suas empresas petrolíferas.
Além disso, esta venda foi realizada em 1999, último ano do governo de Menem, em um ano em que o preço do petróleo tocou nos oito dólares o barril, mínimo histórico em décadas, sendo o paradigma da entrega e do capengar dos infames anos 90.
O governo negociou com o FMI que a venda da YPF pudesse ser computada como uma entrada corrente e não extraordinária para maquiar o resultado fiscal desse ano, violando os critérios técnicos do próprio Organismo. Repsol abonou 13,4 bilhões de euros e pôde converter-se na oitava produtora de petróleo e a décima quinta companhia energética do mundo.
Se a Argentina tivesse continuado seu processo de desenvolvimento econômico quebrado em 1976, YPF teria comprado a Repsol e não ao contrário.
A gestão de Repsol foi catastrófica. Segundo dados da própria companhia, em 1998 as reservas de petróleo eram de 1,5 bilhão de barris, porém em 2011 alcançavam a somente 583 milhões. As reservas de gás diminuíram de 10,38 trilhões de metros cúbicos para 2,36 trilhões no mesmo período e a produção de petróleo caiu de 182 para 100 milhões de barris.
Foi constituído assim um modelo extrativista e rentístico com escassos investimentos e fortes transferências de lucros ao exterior. Foram várias as denúncias de esvaziamento da YPF em benefício da Repsol. Na CNV se realizaram pedidos de informes e se levantaram processos para intervenção da Secretaria de Energia.
A recuperação da YPF
No dia 16 de abril de 2012, a presidenta Cristina Fernández de Kirchner anunciou a decisão de expropriar 51% das ações da YPF em mãos da Repsol através do envio ao Congresso de um projeto de lei que declarava de “interesse público” a produção de hidrocarbonífera.
Junto com o projeto, assinou um decreto de necessidade e urgência com o que interveio temporariamente na condução da empresa e nomeou à frente dela a De Vido, cujas funções finalizaram com a concretização da assembleia de acionistas.
O projeto de lei foi aprovado pelo Congresso em 3 de maio e contou com um amplo respaldo das principais forças políticas do país, ao que se somou o forte aval da população à decisão de que o Estado voltasse a ter o controle da companhia. O Congresso aprovou o projeto por 207 votos a favor, 32 contra e seis abstenções. Com o respaldo do oficialista FPV (Frente para a Vitória) e diversos partidos de oposição. O PRO (Proposta Republicana) de Mauricio Macri votou contra a recuperação da YPF.
O Parlamento também aprovou a intervenção da petroleira, ao ratificar a decisão tomada pela presidenta, por meio do decreto de necessidade e urgência, que foi enviado aos legisladores para seu tratamento.
Em 4 de maio, durante um ato celebrado na Casa de Governo, Cristina Fernández designou a Miguel Galuccio como o novo gerente geral da YPF. A presidente o apresentou como “um símbolo” dos profissionais que retornam ao país e da nova etapa “moderna e competitiva” da petroleira. Galuccio é um engenheiro de petróleo, de 44 anos, egresso do Instituto Tecnológico Buenos Aires (ITBA).
Na sexta, 1 de junho, o ministro de Planificação, Julio de Vido, e o vice-ministro da Economia, Axel Kicillof apresentaram um trabalho denominado “Informe Mosconi”, que demonstrava a estratégia levada adiante pela Repsol para esvaziar a YPF.
“O desinvestimento da Repsol era absoluto e, por sorte, a partir da decisão impulsionada pela presidenta Cristina, aumentamos em 4,2% a produção de petróleo e em 10,2% a de gás”, assinalou De Vido. Por sua parte, Kicillof disse que “fica uma YPF de uma potencialidade enorme, mesmo com toda a destruição que lhe fizeram, sem explorar, sem investir, deixando cair suas reservas e endividando-se para quitar a dívida rapidamente e logo gerar lucros ao exterior”.
O informe Mosconi explicou detalhadamente como Repsol, a empresa espanhola que no início da década de 90 era de porte médio, se expandiu internacionalmente às custas das reservas argentinas de petróleo, numa clara manobra de esvaziamento, que somente serviu para gerar indicadores de rentabilidade com enormes lucros.
“Isto é um informe público, que mostra às claras a manobra de Repsol, uma transnacional que comprou YPF com bônus do governo para vendê-los posteriormente a preço nominal, manobra que rapidamente lhe gerou uma boa diferença”, asseverou o então vice-ministro da Economia,
Neste sentido, o informe assinalava que “o ativo da Repsol aumentou 142% quando comprou YPF e a partir de então começa seu negócio especulativo porque cresce seu endividamento”.
“Nos primeiros dois anos, a Repsol liquida boa parte de nossos ativos, em parte os faz em cash (efetivo) e em parte os deixa sob a órbita da própria empresa, numa transferência intrafirma”.
Durante a gestão da Repsol “se perderam 70% das reservas da YPF, contando as internacionais”.
A Assembleia que gerou a nova YPF
Na segunda-feira, 4 de junho de 2012, data em que se cumpriam 72 anos da morte do General Enrique Mosconi, organizador e primeiro presidente da YPF, foi celebrada a Assembleia Geral Ordinária e Especial de Acionistas da YPF para designar as novas autoridades da Direção e a Comissão Fiscalizadora, entre outras questões.
A assembleia teve lugar na sede social da YPF e tive a honra de presidi-la na qualidade de presidente da Comissão Nacional de Valores – em cumprimento ao à legislação -, pois é o organismo de controle do mercado de capitais. Foi a primeira assembleia ordinária da empresa na nova etapa, após a expropriação concretizada pelo Estado argentino de 51% das ações que estavam em poder da Repsol.
Sob a gestão estatal, a empresa quadriplicou os poços de exploração em relação à média dos três anos anteriores e aumentou a perfuração de poços de exploração de 290 anuais, entre 2009-2011, para 384 em 2012, 33% a mais. Comparado ao período de junho de 2012-maio de 2013 com o ano imediatamente anterior, os poços explorados passaram de 21 a 31, um crescimento de 48%, enquanto os de exploração aumentaram de 363 para 478, 32% a mais.
Até o ano 2015 a YPF alcançou 62,5% de participação no mercado argentino de gasolinas premium e 55,7% de gasolina super. Nos primeiros três anos de gestão da YPF nacionalizada, os investimentos passaram de dois bilhões de dólares em 2011 para seis bilhões estimados para 2015.
A experiência de 2012 a 2015 reflete que foi absolutamente possível ter uma YPF com maioria estatal, com boa gestão e rentabilidade, capaz de atrair investimentos, e inserida em um objetivo nacional de aumento da produção de gás e petróleo e de desenvolvimento federal e integrado do país.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *