Advogado dos sem-terra do Paraguai, Victor Azuaga denuncia “ação militar com propósitos muito bem definidos”. Golpe de Estado derrubou o presidente Fernando Lugo uma semana depois

Leonardo Wexell Severo, de Assunção
Para o advogado Victor Azuaga, as peças do enorme quebra-cabeça do “confronto” que matou 11 camponeses e seis policiais em Marina Kue, no município de Curuguaty, no dia 15 de junho de 2012 ficaram mais encaixadas do que nunca: “Está claro que foi um massacre planificado, com propósitos muito bem definidos”.

Frente à comoção nacional que se seguiu ao sangrento despejo, somada ao ensurdecedor bombardeio midiático e à prostração do governo de Fernando Lugo em dar respostas a crimes pelo quais não era responsável, o presidente foi submetido a um processo de impeachment e apeado do poder sete dias depois.




 

Tiro na parte superior do crânio: execução aérea
“Os primeiros disparos vieram todos de cima, do helicóptero. Por isso as balas atingiram a parte de cima do crânio. Como em campo aberto os tiros poderiam ter vindo tão do alto?”, questiona Azuaga, frisando que, nitidamente, foram dados por “franco-atiradores que dispunham de armas de guerra”. De um lado o exército de desocupação composto por 324 integrantes do Grupo de Operações Especiais (GOE) com fuzis metralhadoras, da Força de Operações da Polícia Especializada (FOPE), das polícias Montada e comum. Do outro, cerca de 60 camponeses – incluindo mulheres, idosos e crianças – “armados” com foices, facões e meia dúzia de escopetas enferrujadas, para matar animais do campo. Armas velhas que, conforme a própria perícia, não foram sequer usadas. A única que aparece como tendo sido disparada não pertencia aos sem-terra e surgiu, do nada, vários dias depois.
Segundo o advogado das vítimas, “os policiais utilizaram um helicóptero Robinson com capacidade de filmar para orientar sua atuação em terra, transmitindo também ao Ministério do Interior. Onde está este material? Não só o filme não apareceu, como o piloto morreu há poucos dias”. A sucessão de conveniências favoráveis ao governo tem provocado protestos dos movimentos de solidariedade, em especial da Articulação Curuguaty.

EXECUÇÕES SUMÁRIAS

Além disso, lembrou Azuaga, “ocorreram execuções sumárias, como a do trabalhador sem-terra Luis Paredes, em quem o tiro entrou pela boca e saiu pelo olho”. O Informe de Direitos Humanos confirma a maioria dos testemunhos: “contra Fermin Paredes dispararam no músculo e depois o executaram. E a Delfin Duarte, também ferido, mas sem gravidade, o liquidaram”. Delfin chegou a falar por celular com a esposa, minutos antes de ser abatido. O médico forense Matias Arce comprovou que ele apresentava “uma ferida com arma de fogo na cavidade bucal”. Richard Barrios, de apenas 15 anos, perdeu a vida pisoteado pelos cavalos da polícia. Outro exemplo, o de Adolfo Castro, morto em frente ao filho de dois anos após ter se entregado com as mãos para cima, deixa evidente a disposição de parte dos agressores. Seria cômico se não fosse trágico, mas o exame de balística feito às pressas, sob encomenda, foi realizado por um ginecologista.
Um dos comandantes da ação, Erven Lovera era irmão do tenente-coronel Alcides Lovera – chefe da guarda pessoal do presidente Fernando Lugo e “guarda-costas” do atual mandatário, Horacio Cartes. Na avaliação de Azuaga, Lovera “conhecia o plano, mas não sabia que era parte dele”. “Temos um áudio em que Erven diz: quando disparem desde o helicóptero, atiraremos desde abaixo”. Lovera foi um dos primeiros a ser mortos. Uma rajada se escuta logo em seguida, instaurando-se, conforme relatam os camponeses “o salve-se quem puder”. Pelo menos 20 camponeses são alvejados. Inúmeros soldados são atingidos por “fogo amigo”. 
A atuação conjunta entre a Polícia Nacional e o Grupo Especial de Operações (GEO), treinado por militares estadunidenses e por técnicos da CIA, só reforça as suspeitas de um plano orquestrado, dirigido a um fim muito claro: a aniquilação de um projeto de desenvolvimento nacional, com forte componente social. O próprio Lovera, informa Azuaga, teria passado por um desses “cursos” no exterior, ostentando inclusive fardamento norte-americano. Nesta mesma toada, o governo do Paraguai aprovou recentemente uma autorização para a chegada de dezenas de “técnicos” do Exército da Colômbia – reconhecidamente preparados pela CIA – para atuar no país.
Condenando a escancarada tendenciosidade do Tribunal de Apelação, “que em menos de 24 horas, sem analisar as provas” voltou a remarcar o julgamento dos camponeses para esta semana em Assunção, o advogado alerta para o sem-número de irregularidades cometidas. “São muitas as arbitrariedades, tanto dos magistrados como dos representantes do Ministério Público, sempre em favor do grupo Riquelme”, afirma Azuaga. A família de Blas Riquelme, falecido recentemente, reivindica a posse de Marina Kue. Blas foi presidente do Partido Colorado, do ex-ditador Alfredo Stroessner (1954-1989), da mesma forma que Blader Rachid, pai do jovem promotor Jalid Rachid, bastante empenhado na injustiça contra os camponeses.
Os grandes latifundiários paraguaios, donos de terras “mal habidas” – tomadas na mão grande ou com apoio das ditaduras de turno – veem qualquer decisão favorável aos sem-terra como um risco à manutenção da estrutura fundiária do Paraguai. Conforme o último censo, mais de 85% das terras são propriedade de apenas 2% da população.
“Há na verdade muitos interesses relacionados à terra por detrás deste processo, dos que acreditam que podem tapar o sol com um peneira. No momento do massacre em Marina Kue, havia uma grande quantidade de maconha estocada numa propriedade contígua. Mas a enorme força policial estava envolvida no conflito com os camponeses”, sublinhou o advogado. A ação possibilitou a que os narcotraficantes ficassem impunes, mantendo intocado o estoque, que pôde ser retirado em segurança.
Para o jornalista e escritor Julio Benegas Vidallet, é preciso lembrar que “quase toda a capacidade operativa do GEO foi utilizada por mais de um mês nos arredores do lugar. Esperavam, talvez, a ordem de despejo”. Doado pela Industrial Paraguaia em 1967 à Armada Nacional, ressalta Vidallet, o território foi transferido em 2004, por decreto presidencial, ao Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (INDERT) para fins de reforma agrária. “Os camponeses estão sofrendo um calvário extraordinário somente porque estão exigindo algo que lhes corresponde por direito e pela lei”, assinalou.
Entre os acintosos absurdos do processo que “só julga os camponeses”, apontou o advogado Victor Azuaga, está a acusação de pertencerem a uma organização criminosa, de invasores, enquanto apenas buscam a repartição de terras do Estado. “A Associação de Vizinhos foi constituída desde 2004, nunca esteva à margem da lei, reivindicava terras públicas, portanto não há delito”, concluiu.

PARTICIPAÇÃO DA CIA

“A participação dos Estados Unidos e da própria CIA no massacre de Curuguaty”, conforme a professora Margarita Duran, da Universidade Católica de Assunção, “está mais do que comprovada”, não só pelo envolvimento dos franco-atiradores como de toda a extensa e complexa rede armada. Uma intervenção policial desemboca rapidamente numa tragédia para expulsar um presidente que vinha materializando avanços sociais, e isso não é investigado, mas banalizado, porque abriu espaço ao impeachment. “Não pensaram nas consequências, que as pessoas iam se perguntar. O helicóptero militar sobrevoou para filmar e fotografar o acampamento. Onde está a filmagem? Agora o piloto, que era uma testemunha chave, morre. É muita sujeira”, assinalou.

O professor de Direito Internacional da Universidade Católica de Assunção e ministro do Paraguai durante o governo Lugo, Hugo Ruiz Dias avalia que “com a prisão dos sem-terra de Curuguaty se perdeu toda a racionalidade”. “Foi algo montado às pressas, completamente à margem da lei, para efetivar o golpe de Estado. O que estamos vendo agora é um julgamento totalmente falso, arbitrário. São presos políticos”, frisou. Conforme Dias, em duas regiões do Paraguai está instalado o Estado de exceção, “lugares em que se desrespeitam direitos humanos básicos”. Enquanto isso, acrescentou o ex-ministro, “há tropas norte-americanas atuando no território nacional, junto com agentes do Mossad israelense e militares colombianos. Toda esta intervenção, somada à atuação das forças militares do Paraguai em questões internas, atua contra a democracia e o processo de integração latino-americana”. 

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