A vitória histórica de Luisa González no primeiro turno das eleições presidenciais do Equador realizadas neste domingo (20) e as condições dadas para o segundo turno, precisam ser entendidas dentro do período histórico das três últimas décadas. Nesse período, do ponto de vista do povo trabalhador, alternaram-se forças do atraso, defensoras do modelo neoliberal com forças progressistas, responsáveis por momentos de avanço nas conquistas sociais.
A atual conjuntura pode vir a ser um novo ponto de ruptura ou de agravamento das condições sociais, em benefício de uma elite milionária que quer o Estado a serviço da potencialização de seus lucros.
Para entender esse contexto, publicamos um artigo inédito do historiador equatoriano Juan Paz y Miño Cepeda, já entrevistado pelo ComunicaSul no curso desta cobertura. O trabalho, datado desta segunda-feira (21), é extremamente elucidativo e merece a leitura.
Eleições no Equador: progressistas ou milionários?
Juan J. Paz y Miño Cepeda
O dia 10 de agosto de 1979 marcou o início do mais longo período de governos constitucionais da história do Equador e, ao mesmo tempo, de vários ciclos presidenciais. Entre 1979-1996 se sucederam: Jaime Roldós (1979-1981), Osvaldo Hurtado (1981-1984), León Febres Cordero (1984-1988), Rodrigo Borja (1988-1992) e Sixto Durán Ballén (1992-1996). Com exceção de Hurtado (que se tornou presidente após a morte de Roldós), todos eles foram eleitos. Foi um ciclo de estabilidade governativa que contrastou com o que se seguiu de 1996 a 2006, quando se sucederam as presidências de Abdalá Bucaram (1996-1997), Fabián Alarcón (1996-1998), Jamil Mahuad (1998-2000), Gustavo Noboa (2000-2003), Lucio Gutiérrez (2003-2005) e Alfredo Palacio (2005-2007). Rosalía Arteaga não era presidente, mas sim vice, responsável pela presidência durante um fim de semana de conflito com a saída de Bucaram. O paradoxo é o fato de os três únicos líderes eleitos (Bucaram, Mahuad e Gutiérrez) terem sido derrubados por “golpes parlamentares”, determinados por mobilizações sociais implacáveis contra eles. Mesmo com a queda de Mahuad, foi instaurada uma efêmera ditadura noturna (21 de janeiro de 2000), com participação militar.
Em perspectiva histórica, a partir do reformismo popular com enfoque desenvolvimentista que caracterizou o governo de Roldós e, relativamente, o governo de Hurtado, a partir de Febres Cordero (presidente empresário/milionário), um novo modelo económico deslanchou no país, inspirado na ideologia neoliberal que se espalhava pela América Latina, em consequência das condicionalidades do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a dívida externa.
O social-democrata Borja interrompeu esse processo, que, retomado por Durán Ballén, se consolidou na década de 1990. O modelo empresarial-neoliberal foi apoiado pelas poderosas elites econômicas do país. Favoreceu o crescimento capitalista acelerado, com privilégios para estas elites, o aumento das classes médias, uma profunda concentração de riqueza e a manutenção de condições de vida e de trabalho deterioradas para a maioria da população nacional. A partir de 2000, a emigração sem precedentes de equatorianos chegou mesmo a disparar, com as remessas do exterior se tornando a segunda maior fonte de rendimento, depois das exportações de petróleo. O curso econômico foi acompanhado pelo enfraquecimento do Estado e pela deterioração dos serviços públicos, pela corrupção pública e privada incessante, bem como pela vida de paz e democracia que os equatorianos esperavam.
Em contraste com as décadas e ciclos anteriores, entre 2007-2017 Rafael Correa governou, eleito três vezes. Um novo ciclo começou porque o modelo neoliberal de negócios foi descartado a fim de estabelecer uma economia social, o que tornou possível recuperar as capacidades do Estado, bem como investimentos e serviços públicos, afirmando um novo quadro institucional, de acordo com a Constituição de 2008.
Os avanços sociais da década de Correa, com a redistribuição da riqueza, a redução da pobreza e a melhoria das condições gerais de vida e de trabalho, foram particularmente destacados em relatórios de organizações internacionais, bem como em estudos e relatórios nacionais”
Os avanços sociais de uma década, com a redistribuição da riqueza, a redução da pobreza e a melhoria das condições gerais de vida e de trabalho, foram particularmente destacados em relatórios de organizações internacionais, bem como em estudos e relatórios nacionais. A economia também cresceu, beneficiada pelos elevados preços do petróleo, bem como da rentabilidade de vários setores de atividade. O país tornou-se uma referência na América Latina, no contexto do que foi identificado na região como o primeiro ciclo progressista. No entanto, com o início da recessão econômica (2014/15), o ritmo das reformas abrandou. Ao longo do caminho, a polarização política entre apoiadores e opositores do governo aprofundou-se e continua até aos dias de hoje. É um sintoma dos diferentes interesses de classe existentes na sociedade, conforme a balança penda para o “correísmo” ou para o “anti-correísmo”.
Embora Lenín Moreno tenha sido patrocinado pela Revolução Cidadã, o seu governo (2017-2021) marcou outro ciclo, pois restaurou o modelo neoliberal-empresarial e perseguiu o “correísmo”, cujos líderes mais visíveis (incluindo Rafael Correa) foram processados por “corrupção”, “associação criminosa” ou qualquer outra acusação que alimentasse o implacável lawfare, com o qual se presumia a culpa de qualquer “correísta”. Nestas novas condições, afirmou-se um bloco de poder dominante expresso na direita econômica, midiática e política. As consequências de tal virada histórica se traduziram na desestabilização institucional, na perda de capacidades do Estado, na falência dos serviços públicos, no renascimento dos interesses das elites econômicas e de setores das classes médias com elas identificados e na repressão dos movimentos sociais. O colapso das condições de vida e de trabalho regressou, com o aumento da pobreza, do desemprego e do subemprego, agravado em 2020 pela chegada da pandemia mundial do Coronavírus, negligenciada pelo governo.
O sucessor Guillermo Lasso (2021-hoje), outro presidente empresário/bilionário (banqueiro), conseguiu consolidar o bloco de poder que usou Moreno para conseguir a restauração dos seus interesses. Desta vez, o modelo empresarial-neoliberal adquiriu características oligárquicas, comparáveis às que o Equador viveu durante a primeira “era plutocrática”, entre 1912-1925, baseada na dominação despótica privada. Isto explica não só a continuidade das políticas de Moreno, mas também a sua expansão, que levou ao “encolhimento” do Estado, afetando suas capacidades e a institucionalidade nacional. Desta vez, o caminho neoliberal foi o mais profundo das últimas quatro décadas. Como resultado, as políticas sociais entraram em colapso e o aumento dramático da insegurança dos cidadãos foi agravado pela explosão da delinquência e do crime organizado, diante da incapacidade do Estado para lhes fazer frente.
Diante destas situações históricas complexas e a perda de legitimidade social do governo, a Assembleia Nacional propôs a destituição do Presidente Lasso, que se antecipou ao processo aplicando a “morte cruzada” (maio de 2023), um mecanismo constitucional que implica eleições antecipadas tanto para o executivo como para o legislativo. De fato, Lasso não conseguiu concluir o seu mandato presidencial e junta-se aos três presidentes destituídos do passado imediato, que também não conseguiram concluir o seu mandato.
Nestas circunstâncias, os resultados das eleições de domingo, 20 de agosto (2023), refletem uma realidade histórica: no segundo turno (15 de outubro), estarão Luisa González e o empresário milionário Daniel Noboa. Luisa González representa a possibilidade de fazer avançar uma economia social, cujas bases, como sublinhou, foram lançadas pelo governo de Rafael Correa. Por outro lado, Daniel Noboa, apesar da imagem de renovação política e de juventude que projetou (e que lhe deu uma vitória surpreendente), tanto em termos do seu programa de governo como das suas declarações e do círculo empresarial e social a que está ligado, representa a continuidade do modelo econômico empresarial-neoliberal e oligárquico. Tal como no passado, a palavra de ordem será “todos contra o correísmo”. Uma polarização que é preocupante na América Latina, tendo em conta os riscos para o projeto progressista no Equador. E, sem dúvida, estará também na mira dos Estados Unidos, numa conjuntura internacional em que qualquer inclinação de um país para a esquerda é prejudicial ao monroísmo-americano.
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A Agência ComunicaSul está cobrindo as eleições presidenciais e à Assembleia Nacional do Equador graças ao apoio das seguintes entidades: jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Barão de Itararé, Portal Vermelho, Correio da Cidadania, Agência Saiba Mais, Intersindical, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Central Única dos Trabalhadores do Paraná (CUT-PR); Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP), Federação dos/as Trabalhadores/as em Empresas de Crédito do Paraná (FETEC-PR), Sindicatos dos Trabalhadores em Água, Resíduos e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema-SP) e de Santa Catarina (Sintaema-SC), Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada no Estado do Paraná (Sintrapav-PR), Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp Sudeste-Centro), Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal de Santa Catarina (Sintrajusc-SC); Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (Sinjusc-SC), Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário Federal em Pernambuco (Sintrajuf-PE), mandato popular do vereador Werner Rempel (Santa Maria-RS) e dezenas de contribuições individuais.
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