O governador de Oruro, Zenón Pizarro, nos acolheu gentilmente em meio a uma verdadeira batalha de agendas na última sexta-feira, empenhado em virar a página de chantagem, perseguição e terror deixada pelos golpistas bolivianos, contribuindo para a tão necessária pacificação da região e do país
Leonardo Wexell Severo
Oruro/Bolívia
Como um enxadrista disputando várias partidas ao mesmo tempo, Zenón dialogava com representantes dos movimentos sociais e da Polícia Militar, tocando em frente os projetos de desenvolvimento multiplicados coletivamente pelo Movimento Ao Socialismo (MAS), partido de Evo Morales, ao longo de mais de 13 anos em que esteve na presidência.
Foi em Oruro que partidários e mercenários da autoproclamada Jeanine Añéz, dos derrotados candidatos oposicionistas Óscar Ortiz – racista de Santa Cruz de la Sierra –, de Carlos Mesa – ex-presidente -, e do fascista Luis Camacho colocaram fogo nas residências de Esther Morales, irmã de Evo, e do prefeito, que inclusive era de um partido conservador. Incendiaram também a do governador Victor Hugo Vázquez, renomado ex-vice-ministro de Desenvolvimento Rural e Terras, e até mesmo no seu cachorro. Aqui vale um parêntesis porque a mesma mídia que omitiu os requintes de crueldade da morte do animal tratou com alvoroço a adoção pela autoproclamada de “dois cachorrinhos de rua”.
Me encontrava no aeroporto de Santiago do Chile aguardando a conexão para La Paz quando fui informado de que uma delegação de ativistas de direitos humanos da Argentina havia sido fustigada por mercenários e marginais de Camacho no aeroporto de Santa Cruz e que teve problemas com a polícia.
Logo depois soube que do alto da prepotência, Arturo Murillo, “ministro de governo” de Ánéz, foi além e tentou fechar o cerco contra toda e qualquer ação de busca da verdade sobre a realidade boliviana. Queria manter invisibilizados os presos políticos, os militantes perseguidos e desaparecidos. Informações precisas e preciosas que desnudam o completo descompromisso com o “Acordo de Paz”, cumprido e respeitado tão somente pelos partidários de Evo.
Nas palavras de Arturo Murillo ecoam o medo pânico da verdade. “Estes estrangeiros que estão chegando ao país que andem com cuidado, que os estamos seguindo, os estamos seguindo”, ameaçou. Para logo em seguida vir com a advertência intimidatória: “no primeiro passo em falso que derem tratando de fazer terrorismo e sedição vão se ver com a polícia, que já está atenta e tem ordem para não permitir que causem dano a nosso país”.
Apesar das ameaças, as advertências e denúncias feitas pelos movimentos sociais e organizações humanitárias em relação ao infeliz banho de sangue promovido pelos fascistas estão fartamente documentadas e já passam de 30 as mortes, de 800 os feridos à bala e chegam a centenas os presos e desaparecidos, sem falar nos adolescentes e adultos torturados. Felizmente, a covardia não é o nosso forte.
Conforme a presidenta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Esmeralda Arosemena, “em duas cidades da Bolívia houve uma situação de assassinatos, de massacre, onde há um número de mortos importante”. “O que se recolhe como informação é que os massacres foram com participação das Forças Armadas e da Polícia logo após o decreto nefasto que deu impunidade às Forças Armadas”, aponta a CIDH.
Neste clima e diante deste crime fui com meu parceiro Joaquim Rojas entrevistar o governador Zenón Pizarro. Três horas e meia para ir, três horas e meia para voltar a El Alto, e muita história para contar.
O governador de Oruro fez uma contundente denúncia do papel da “mídia local na fabricação de mentiras contra o presidente Evo Morales, das quais a principal foi a de que houve fraude, quando comprovadamente vencemos as eleições”. “Quando Áñez assume a presidência, uma autoproclamada já que não tinha o quórum mínimo da sessão do Senado, os policiais cortam a bandeira indígena que expressa a integração da multiplicidade étnica boliviana, a Whipala, dos seus uniformes, e isso faz com que imediatamente haja uma enorme reação, gerando convulsão”, explicou.
Para Pizarro, neste momento o essencial é enfrentar “uma elite ávida para voltar ao poder para enriquecer, para entregar o país aos estrangeiros”. “Precisamos ter claro que a nossa luta é contra o império e que, por isso mesmo, necessita mais do que nunca de unidade, solidariedade, diálogo e mobilização”, enfatizou.
Boa leitura
O governador Zenón Pizarro e Leonardo Severo, durante entrevista no Palácio de Governo de Oruro – foto JR |
O atual ministro de governo deu uma declaração ameaçando ativistas de direitos humanos e jornalistas com a acusação de “sedição e terrorismo” caso tentem trazer à tona a verdade sobre os seus crimes. Qual a importância da solidariedade neste momento?
Em primeiro lugar, irmão Leonardo, muito obrigado por esta visita a Oruro. Para nós é essencial contar com o apoio de meios de comunicação brasileiros à luta dos nossos povos indígenas originários e às nossas comunidades rurais por justiça. A nós dão pouca acessibilidade para solucionar os conflitos, por isso houve a perseguição à delegação de companheiros argentinos, ela se dá dentro deste contexto.
Foi a nossa luta histórica que garantiu que inseríssemos o reconhecimento aos 36 povos indígenas originários e o respeito à Whipala na Constituição Política do Estado. Áñez, no entanto, desde que era senadora, sempre nos insultou, nunca nos aceitou, humilhou, não reconhecia nossa Whipala. Quando Áñez assume a presidência, uma autoproclamada já que não tinha o quórum mínimo da sessão do Senado, os policiais cortam a Whipala dos seus uniformes, isso faz com que imediatamente haja uma enorme reação, gerando convulsão. Porque esta bandeira é um símbolo, não representa o Movimento Ao Socialismo, a um partido, representa os povos indígenas que não merecem e não aceitam ser destratados. A luta já se torna maior do que a que travamos pelo nosso irmão presidente, é por nosso símbolo nacional reconhecido na nossa Constituição.
E começaram as perseguições ao MAS.
Com as crescentes ameaças e perseguições houve a renúncia do nosso irmão presidente e de vários governadores. A classe alta, a elite, começou a liderar o vandalismo. Da parte de Evo nunca houve a mobilização para a repressão da parte das forças policiais ou do Exército, muito pelo contrário, buscou a pacificação. Por isso renunciou. Mas aí se autoproclama a atual presidenta e a Whipala é baixada do Palácio de Governo, a queimam, e houve a reação.
E como foi a cobertura da imprensa local a este festival de abusos?
A imprensa local tratou de ocultar todas essas imagens, de omitir a repressão, as agressões. Foram os meios internacionais, particularmente os argentinos, que se expuseram, deram a cara para bater, revelando a verdade dos fatos. Hoje isso está vindo à tona com os organismos internacionais também fazendo denúncias, mas há uma luta árdua, porque estão querendo silenciá-los, freá-los. Estamos num momento muito difícil.
Entre outros veículos defensores do projeto de transformações tínhamos o jornal Cambio, que foi fechado após o golpe, e um sem número de outros meios que simplesmente foram silenciados. Como isso ocorreu?
A mídia local foi cúmplice do golpe, com todas as mentiras fabricadas contra o presidente Evo Morales, da qual a principal foi a que tinha feito uma fraude. Vencemos as eleições, isso está comprovado. O irmão presidente indígena deu dignidade aos bolivianos, hoje somos um povo reconhecido e dignificado em todo o mundo, isso é faz parte da história.
Já a mídia local fez o desserviço. Por isso quando havia reuniões para denunciar a repressão e os crimes contra a população, os familiares das vítimas não deixavam que a imprensa nacional entrasse, pela cumplicidade com os assassinos, por esconder a verdade.
Para fazer o necessário contraponto, o Coletivo ComunicaSul foi um dos mais importantes, se somando conosco e em nome do povo de Oruro reconhecemos seu empenho para trazer informações e dar elementos de consciência. Porque muitas vezes nos deixamos levar pelas redes sociais, por fake news.
Foi o que aconteceu no dia 21 de fevereiro de 2016, na consulta popular sobre um novo mandato presidencial em que mentiam que o voto pelo Sim, por Evo, significava cobrar impostos das galinhas, das lhamas e ovelhas. Iam para o campo dizer o oposto da realidade. Diziam: irmãos, se querem que Evo fique, então votem não. Uma confusão total, mentiras. A elite infelizmente vinha sempre nos sufocando com mentiras. Agora acredito que isso terá fim, porque estão vindo à luz uma verdadeira profusão de falsidades em que foram flagradas. E as pessoas estão se dando conta.
Leonardo diante da casa de dona Esther Morales, irmã de Evo, queimada pelos fascistas em Oruro. Foto JR |
Os golpistas tomaram de assalto o Estado. E agora?
Agora começaram a fazer um verdadeiro massacre branco, onde o racismo coloca à frente do Estado a sua gente. Um tipo de limpeza étnica. Com isso a elite está demonstrando que estava desesperada para chegar ao poder, o que faz com que nossa população indígena se sinta ainda mais unida e fortalecida para dar a resposta. Exemplo disso foram as mobilizações de El Alto, Cochabamba e Yapacani em apoio a Evo.
Chamam a atenção os variados massacres e a impunidade, que foram sendo informados a conta-gotas. Qual foi a tua reação quando soubeste da dimensão dos atropelos?
Doía não estar aí junto com os meus irmãos, levantando a Whipala, lutando por nossas reivindicações. O que esta classe alta fez foi algo completamente imoral, sem princípios, próprio de uma elite sem qualquer personalidade, ávida por voltar ao poder para enriquecer e entregar o país aos estrangeiros. São movidos por mentiras para ganhar votos.
Aqui em Oruro, como em outros departamentos, o governador teve de renunciar após queimarem sua casa, seu cachorro e ameaçarem sua família. Conte-nos um pouco sobre como isso aconteceu?
Inicialmente a elite da cidade começou o protesto de forma lenta, bloqueando as ruas com faixas e cordões, com baldes, e fomos respeitosos, nunca abrimos caminho à força, nunca rompemos nada, deixando que se manifestassem. Algo totalmente diferente de quando nossa gente mais humilde se manifestou e foi reprimida pela polícia. Logo chegaram vândalos do interior do país, que queriam queimar o Tribunal Eleitoral Departamental. Não conseguiram, mas tentaram. Logo depois foram queimar as casas das autoridades. Assim fizeram com a do nosso governador Victor Vázquez, que demorou tantos anos para ter a sua casa própria, fruto de seu trabalho de toda sua vida, e foi queimada com todos os seus bens. E, sem nenhuma compaixão, colocaram fogo inclusive no seu cachorro. Foi um momento extremamente crítico e doloroso. Começou a sair pela internet que muitas autoridades do MAS começaram a ser perseguidas, havia uma lista em que incluíram meu nome porque fui deputado e presidente da Assembleia Legislativa. Diziam que viriam me buscar. Tivemos que nos cuidar, vereadores, prefeitos, deputados, governadores, todos precisamos ir para o campo a fim de ter mais segurança. Então houve uma mobilização em nível nacional. E uma paralisação.
Oruro pudesse contribuir com algo neste momento para uma nova vitória do MAS? Com o que seria?
Precisamos unir forças contra um nível de intransigência que sai de todos os limites, completamente inexplicável. Eu mesmo não compreendo como podem queimar casas de uma pessoa somente por não expressar o seu mesmo pensamento. Atearam fogo na casa do governador, da irmã do presidente, do prefeito que nem era do partido do governo.
Quando assumimos o governo creio que o mais importante de tudo foi o diálogo que realizamos para derrotar o vandalismo, a perseguição política e as ameaças. Convocamos a todas as instituições públicas, as autoridades, a todos os setores que se sentiam prejudicados, aqui principalmente a Federação dos Trabalhadores Camponeses de Oruro.
Pacificamos Oruro, levantamos todos os bloqueios e começamos a dar um marco para o governo central chegar à pacificação.
E como ficam as candidaturas do MAS, particularmente as novas eleições presidenciais?
Acredito que estamos mais vivos do que nunca e é isso o que preocupa, o que deixa desesperada a direita que neste momento está na presidência. Por isso inclusive estão fazendo concessões importantes como para as reivindicações salariais do Magistério, o aumento salarial e das aposentadorias da Polícia, a continuidade das obras do presidente Evo. Estão desesperados para entregar as obras e não chamam nem as autoridades estaduais ou municipais porque estão ansiosos para capitalizar uma obra que nem foi eles que fizeram. É um desespero tremendo que acredito que nos favorece. Voltaremos ao governo. A população diz não à violência. Em tão pouco tempo tantos mortos em Montero, El Alto, Cochabamba e Yapacani. Com tudo o que passou o MAS está mais articulado e unido. Agora precisamos agir de forma bastante planificada e com consenso.
Quais os nomes que indicarias para comandar a disputa pela presidência e seguir o projeto de transformações?
Um dos nomes mais fortes é o de Andronico Rodriguez, um grande nome à altura do Trópico; temos o nome de Adriana Salvatierra; de Mabel Monje, de El Alto; do ex-ministro da Economia, Luis Arce; do ex-chanceler David Choquehuanca. Creio que estes são os nomes com os quais vamos articular, mas é preciso consensuar, impor qualquer um seria o caminho da derrota. Vamos unificar para disputar e vencer com o Movimento Ao Socialismo à frente.
Como vês a importância da industrialização, o que significado que ela vem tendo para o desenvolvimento soberano da Bolívia?
Em primeiro lugar é preciso comparar o antes e o depois de Evo. Nestes treze anos que a Bolívia teve à frente nosso irmão houve uma mudança tremenda em todo os rincões e, em Oruro particularmente, foi construída a mais moderna indústria de cimento da América Latina. Também no que diz respeito à industrialização temos a construção de uma planta de energia solar e logo mais teremos a unidade de lítio, que são investimentos de centenas de milhões de dólares.
Panorâmica da Empresa Pública Produtiva de Cimentos da Bolívia (Ecebol), inaugurada em agosto pelo presidente Evo |
Eu conheço, toda a minha vivência foi no campo, cheguei à cidade apenas para ter acesso aos níveis superiores de educação, à universidade: nunca se viram obras desta magnitude. Sofríamos com o isolamento, com a falta de comunicação, não tínhamos uma rodovia, uma escola adequada, eram de paredes de barro, sem nada. Hoje dá inveja porque as estruturas são modernas com quadras poliesportivas cobertas com piso sintético que muitos nem sonhávamos existir, hospitais completamente equipados, rodovias pavimentadas.
Vale lembrar que há regiões no interior de Oruro em que produzimos quinua, o chamado grão de ouro, na fronteira com o Chile, em que, inundadas, chegávamos em três ou quatro dias e hoje chegamos em três ou quatro horas. Foi melhorada a saúde, foram garantidos bônus para a terceira idade, foi implantado o bônus Juana Azurduy – para as mulheres jovens grávidas e bebês até dois anos, o Juancito Pinto – para os estudantes.
Aqui temos investimentos grandes como a construção do Campo Ferial Multipropósito, um galpão imenso para a venda de produtos agrícolas e industriais, a construção da piscina olímpica, do Teatro Nacional, das Unidades Educativas Mineiros 2000 e Ernesto Guevara de la Serna, que se somam a outras 30 escolas entregues.
Mas os investimentos são os mais amplos e variados que vão desde a construção de represas a de um teleférico turístico, de avançarmos com um centro de melhoramento genético de ovinos até um trem bioceânico.
Graças ao companheiro Evo vivemos novos tempos. Recordo quando era criança e vivia no campo quando chegava um técnico do governo e nós, que muitas vezes ficávamos semanas sem comer carne, tínhamos que sacrificar um cordeiro para ele. São coisas que quando a gente recorda, dói. Como povos indígenas originários não podemos deixar que volte esse desgoverno que tanto mal nos tem feito em tão poucos dias.
Como denunciou o próprio presidente Evo Morales houve claramente uma interferência da embaixada norte-americana e correu muito dinheiro para a consumação do golpe.
Não há nenhuma dúvida de que correu dinheiro, muito dinheiro. O golpe estava armado muito antes das eleições. O governo norte-americano já havia planificado e organizado tudo. Assim, poucas horas depois do começo da contagem dos votos no dia 20 de outubro, Carlos de Mesa diz que haveria segundo turno. Infelizmente, o presidente Evo cai nesse jogo e anuncia que se sentia vencedor. Eles então jogam no caos e dão um golpe de Estado. Agora estão desesperados e vão querer comprar votos. Felizmente, o voto é secreto e nossa gente é sábia e vai lhes dar uma lição.
Eles estão no poder e querem nos calar de um jeito ou de outro, fazer a perseguição política, sequestrar, tentar de todas as formas se manter aí. Mas não vai ser assim. As pessoas estão com o MAS porque dignificou o país. Diante disso só resta à direita tentar impor medo, como estão buscando fazer com as delegações internacionais que vieram prestar solidariedade ao nosso país, vão perseguir nossas candidaturas, ameaçar, isso somente demonstra a sua fraqueza.
Aqui em Oruro, pelo trabalho que realizamos neste curto tempo, estamos avançando com diálogo e é assim que acredito que devamos prosseguir em nível nacional onde cometemos erros, e é preciso reconhecer. Porque ao longo do tempo acabamos dando muito poder para algumas famílias ou setores e isso mina a nossa capacidade de aglutinar e de lutar coletivamente. Precisamos ter claro que a nossa luta é contra o império e que, por isso mesmo, necessita mais do que nunca de unidade, solidariedade, diálogo e mobilização.
*Leonardo é repórter do jornal Hora do Povo e integra o Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul que está cobrindo a luta do povo boliviano com o apoio das seguintes entidades: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; Hora do Povo; Diálogos do Sul; SaibaMais; 6 três comunicação; Jaya Dharma Audiovisual; Fundação Perseu; Abramo; Fundação Mauricio Grabois; CTB; CUT; Adurn-Sindicato; Apeoesp; Contee; CNTE; Sinasefe-Natal; Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região; Sindsep-SP, Sinpro MG, Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região e professores da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
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