Verónica Ramos: “o interesse do império é limitar todos os nossos avanços” |
LEONARDO E MONICA SEVERO, DE LA PAZ
Nesta entrevista concedida na Casa do Povo, nova sede do governo, em La Paz, a diretora-geral da Oficina Técnica para o Fortalecimento da Empresa Pública (OFEP) da Bolívia, Verónica Ramos Morales, “resgata o papel estratégico da YPFB, por onde se iniciou a retomada do patrimônio e para o desenvolvimento”, como responsável pelas inumeráveis conquistas obtidas em todos os campos pelo país andino, que há cinco anos seguidos ostenta o PIB que mais cresce na América do Sul. Ex-ministra do Desenvolvimento Produtivo e Economia Plural da Bolívia, Verónica denuncia a “cruel herança deixada pelos 25 anos de neoliberalismo”, “como privatizações que fracassam por serem abertamente corruptas, e se transformam gradualmente em capitalização” e destaca o papel da participação popular na vitória do “modelo econômico, social, comunitário e produtivo” defendido pelo presidente Evo Morales. Fala de direitos sociais e humanos, de participação popular e empoderamento, do envolvimento de quebradeiras de castanha e de ministras, de superação, de vida. “Obviamente, agora o interesse do império é ver como limitar todos esses avanços, mas os resultados saltam à vista, são impossíveis de ocultar”, sublinha.
Verónica e Leonardo Severo, nova sede do governo boliviano, em La Paz |
O governo boliviano valoriza as empresas públicas e tem uma estrutura responsável para investir no seu contínuo fortalecimento. Qual a relação desta orientação político-ideológica com o momento de crescimento econômico vivido pelo seu país?
É importante fazer uma análise do nosso modelo econômico, social, comunitário e produtivo. A premissa fundamental é que a política econômica e social precisa ser sustentável. Nesse modelo se estabelece claramente um setor estratégico, que inicialmente vai poder transferir recursos para o desenvolvimento dos demais setores e também parte da redistribuição.
Começamos com a nacionalização, em 2006, da Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e de todas as outras empresas que haviam sido privatizadas e de todos os recursos que se puderam recuperar. Tínhamos inúmeros problemas herdados dos 25 anos de neoliberalismo, como por exemplo o fato da nossa rede ferroviária ter sido comprada pelos chilenos, que a fizeram desaparecer quase totalmente.
Qual o interesse por detrás desta desativação?
Quando as empresas são privatizadas, os chilenos apostam e o Estado lhes garante os recursos. Com uma lógica muito economicista, veem o que rende ou não e se fecham ou não. Mas há também uma lógica muito geopolítica, porque o transporte ferroviário para a indústria é fundamental e nos fecham áreas muito importantes. Tiram espaço de um concorrente em potencial.
Porque é difícil reativar as ferrovias? Porque é preciso reconstruir parte da rede, que sai bastante caro.
Diante disso, a recuperação dos hidrocarbonetos se converteu no nosso elemento fundamental para poder pensar no conjunto da política social e na política pública. Porque praticamente não gerávamos renda. Vocês devem ter ouvido as declarações de Carlos Mesa de que pedíamos esmola para pagar os salários dos médicos e para pagar o Bônus Dignidade [de apoio à população idosa a partir dos 60 anos]. A ideia era como fazer para gerar os recursos suficientes. E apostamos na empresa pública como elemento que além de gerar renda, dinamiza o conjunto da economia. Fizemos intervenções de vários tipos, de maneira estratégica em determinados setores ou de forma mais local, com efeitos diferentes. Agora podemos fazer uma análise de como foi o resultado. Este é um ponto. Por outro lado, historicamente nosso país não havia desenvolvido os elementos necessários para garantir qualidade de vida às pessoas, para suprir suas necessidades básicas. Tampouco havíamos trabalhado uma articulação nacional rodoviária, por exemplo. Prova disso é que temos pela primeira vez em 2015 o presidente inaugurando uma rodovia de mão dupla, o que significa um atraso no tempo histórico para o desenvolvimento da atividade produtiva.
Por outro lado, muitas das nossas cidades intermediárias contavam com energia elétrica tão somente para ter uma pequena fábrica. Em outras, se havia uma fábrica tinham que trabalhar à noite para não consumir toda a energia da comunidade.
A energia é crucial para dinamizar a economia.
Temos mais de 300 municípios, nove capitais, cada uma com uma cidade intermediária, que são importantes para o desenvolvimento local. Além disso, tínhamos o problema de que não havia gás para a indústria, que era baseada na eletricidade, ainda mais cara. Parte de todo o trabalho feito pelo Estado inicialmente era gerar as condições para melhorar a qualidade de vida, reduzindo os níveis de pobreza alarmantes. Temos conseguido melhorar o que chamamos em economia de satisfação das necessidades básicas: luz, água, moradia, saúde. Acreditamos que isso é fundamental.
Por outro lado, é preciso desenvolver as bases para a atividade produtiva. Foi então que começamos a impulsionar a construção de estradas – ampliadas de cerca de 1.000 quilômetros para mais de 5.000 quilômetros de rodovias pavimentadas, com mais de 2.700 em construção. Fizemos muito, mas ainda há mais por fazer.
Multiplicamos a quantidade de energia elétrica produzida e temos hoje quase todo o país integrado. Nos falta integrar Pando, que é uma região bastante distante e que ficou muito tempo abandonada, para a qual buscamos uma solução alternativa, um sistema de energia solar fotovoltaica, baixando os custos do uso do diesel.
Iniciamos a distribuir gás natural nas cidades, às pessoas e famílias, e isso também nos permitiu utilizar o gás na produção. Nos locais onde ainda não conseguimos montar uma estrutura de distribuição de gás natural através de dutos, fizemos um processo de regasificação, que significa levar o gás em grandes cisternas para depois redistribuí-lo. Estes são os elementos iniciais para o desenvolvimento da atividade produtiva.
A YPFB é mesmo o carro chefe.
Exato. Nosso primeiro feito importante foi a nacionalização dos hidrocarbonetos. Fizemos as unidades separadoras de líquidos e, em vez de sermos importadores de gás liquefeito, nos transformamos em exportadores.
Antes tínhamos a dificuldade de extrair o produto bruto e não podermos separá-lo. Tínhamos que enviá-lo, não nos devolviam e precisávamos importá-lo. A nacionalização foi um elemento fundamental porque começamos a gerar recursos e a poupar, dinheiro que nos permite garantir o consumo nacional.
A partir da entrada destes rendimentos provenientes da YPFB vamos começar a desenvolver os demais setores produtivos e a fortalecer a economia em seu conjunto. Então a YPFB faz uma transferência a partir dos royalties e do Imposto Direto aos Hidrocarbonetos (IDH), repassando cerca de 45% dessas entradas para os departamentos, às universidades e outros setores. Obviamente, nossa proposta é que este setor estratégico precisa ser o inicial, mas não pode ser o único.
Aí entra o papel da industrialização.
Sim, aí começamos a industrialização. Já iniciamos a exportação de ureia e do amoníaco, estão programadas as construções das fábricas de polietileno, e intervimos em outros setores como o agropecuário, através de pequenas indústrias. Sempre com a perspectiva de estimular um melhor pagamento ao produtor, que é o elo mais débil da cadeia. Aí entra o Estado com pequenas empresas. Começamos com as lácteas, que são doação iraniana, e com a Pil, uma empresa boliviana que foi vendida ao Peru. Temos uma gigantesca unidade da Pil que não satisfaz os produtores, pois além de pagar um preço baixo ainda castiga em termos de qualidade. Neste caso, particularmente no Altiplano, onde há uma grande produção leiteira, o Estado interveio e a empresa teve de deixar de ser um monopólio e passar a competir, pagando melhores preços.
O efeito não é só que os produtores acabaram levando o que produziram para a Lacteosbol, a empresa pública produtiva de lácteos da Bolívia, mas elevando o preço também em regiões em que não há unidades da Lacteosbol, como Santa Cruz. Então temos aí um forte impacto.
Outra intervenção deste tipo tivemos com a Eba (Empresa Boliviana de Amêndoas e Derivados), em Pando, no Norte. Somos grandes exportadores de amêndoas amazônicas, também conhecidas como castanhas do Brasil.
Um dos sistemas de pagamento ao coletor, ao safreiro, é o “habilito”, histórico, vindo dos tempos em que descíamos para os espanhóis nas minas. Nele se paga um adiantamento e depois se desconta à medida que o produto vai sendo entregue. Em primeiro lugar, isso faz com que haja uma pressão em termos de salário, porque se paga um valor mais baixo e, em segundo lugar, de carestia, pois como são regiões mais distantes, o contratante abastece o trabalhador com produtos básicos para o consumo familiar aos quais não têm fácil acesso. E os safreiros vão com suas famílias, precisando de azeite, farinha, arroz, etc. que acabam comprando a preços elevados. A situação do safreiro era, portanto, muito dura. A relação de trabalho mudou totalmente com a criação da empresa pública.
Uma relação de completa dependência, manipulada a seu favor por todo tipo de empresas em várias regiões do Brasil.
Erguemos a unidade com a perspectiva de que fôssemos fazer como as empresas privadas, porém pagando melhor preço e verificando que os produtores possam comprar seus alimentos fora do provedor inicial. Isso melhorou bastante o ingresso. Aumentamos o preço e possibilitamos que o produtor comprasse alimentos mais baratos. Além disso, ao mesmo tempo, começamos a certificar a castanha. Aos produtores que tabalhavam com castanha orgânica e queriam certificado lhes era pago um adicional. Isso representou uma mudança radical em relação à exportação da castanha no Norte do país.
A mudança radical também chegou à valorização da mão de obra feminina.
Exato. Outro elemento da castanha são as quebradeiras, que principalmente são mulheres. A amêndoa fica dentro de uma casca e é preciso parti-la. Os rendimentos eram muito baixos, as condições de trabalho eram galpões insalubres onde entravam as mulheres com seus filhos, totalmente sem condições.
Fizemos uma unidade modelo. Terceirizamos com empresas privadas, mas nas condições que nós apontamos como as mais adequadas para o trabalho com a possibilidade de creches, de um salário melhor. Apesar de que isso aumentou o preço de custo das empresas privadas, todas seguiram no mercado, o que demonstra que o lucro era extremamente grande.
Então decidimos também transformar a castanha. Erguemos uma tenda na Alemanha, onde exportávamos a castanha em bruto, em grande quantidade, onde lhe fracionam. São especialistas em fracionar e arrecadar daí seu lucro. Diante disso, começamos a transformar a castanha em bolachas, castanha com chocolate orgânico, agregando valor.
Também começamos a incorporar modelos especiais. Por exemplo, há uma unidade em que trabalhamos com jovens privados de liberdade, onde os jovens recebem e economizam para quando saírem. Estas fábricas geram lucro e parte deles abastece o Estado para o pagamento do bônus Juancito Pinto, que garante a permanência dos jovens bolivianos na escola ao longo do ano. Além disso, gera recursos para redistribuir em uma dinâmica local. A verba para o Juancito Pinto já não sai mais do Tesouro Geral, mas das empresas públicas, que vão cumprindo o seu desafio, sobrando mais dinheiro para fortalecer o desenvolvimento. Com o Juancito Pinto melhoraram os indicadores, particularmente no ensino médio, que é mais complexo, porque os jovens deixam os estudos para trabalhar ou se desinteressam. Passamos também a incorporar elementos da educação técnica, o que acaba tornando o ensino mais interessante, elevando para 94% a presença na sala de aula.
Do ponto de vista do setor agrícola, incorporamos em 2009 a Emapa (Empresa de Apoio à Produção de Alimentos), que tem como objetivo principal trabalhar as reservas estratégicas de grãos. Está no marco da soberania e da segurança alimentar. Conformamos a empresa quando começamos a ter uma série de especulações e problemas de abastecimento de arroz, trigo e milho. O que aconteceu? Melhoraram os preços a nível internacional e os produtos saíram. Agora há uma política que não sai nada se não abasteces primeiro o mercado interno. A partir de então começa adicionalmente uma política de especulação também no mercado interno.
Um alimento que tem sido historicamente muito importante para o nosso país é o pão, que é barato, e gera crise. Se sobe o preço do pão, sobe tudo, é detonante. Por isso começamos a controlar o preço do pão.
Começamos a ver que éramos um país produtor de trigo, que satisfazíamos a nossa demanda nacional, mas na década de 60, quando os Estados Unidos tiveram excesso de produção, nos doou farinha, E não há quem dispute com doação. Deixamos de produzir trigo e agora somos um mercado dependente deste produto. Nossa política foi começar a produzir trigo a nível nacional e manter os preços, com subsídios ao produtor, para incentivar, e uma subvenção à farinha ao panificador.
Mantivemos durante estes 13 anos o preço do pão e em 2015 tiramos a subvenção. Foi algo difícil porque as pessoas pensam que a subvenção é histórica, permanente. Tomamos esta decisão porque estava estabilizado o preço da farinha e porque já passamos a contar com uma produção nacional importante. Já não importamos a maior parte e a cada ano vamos incorporando mais e mais hectares de produção.
Além disso, há a questão do milho, produto fundamental para o alimento balanceado. Disso depende o preço das carnes de gado, porco e frango, do leite e do ovo. O milho se transformou igualmente num elemento chave, porque forçava uma pressão inflacionária grande, pois se aumentamos o insumo aumenta o preço da carne. Por isso intervimos também para segurar o preço do milho.
Neste caso, temos dois problemas: quando há um bom ano na Argentina, nos invadem; quando não, o milho sai. É um quadro em que é preciso agir e a Emapa tem cumprido muito bem com o seu papel e mantido os preços, controlando a inflação.
A reserva estratégica funciona que quando falta, abastece o mercado interno, mas para garantir isso, por trás, a empresa começou a promover a produção, a estimular o produtor, a pagar bons preços, a dar financiamento, desenvolver e adaptar tecnologia, a possibilitar toda uma estrutura. Por isso temos um resultado muito importante na manutenção da inflação, sobretudo destes produtos importantes no consumo nacional, e que exercem uma forte pressão especulativa sobre o conjunto da economia.
Adicionalmente, no tema do arroz, quando houve a crise internacional de 2008, começamos a melhorar a produção e agora temos um mercado nacional de arroz – que é também essencial na dieta – controlado, com nova tecnologia, que nos permitiu manter seu preço.
O Estado intervém aí não para gerar recursos, mas com o objetivo de empresa pública. Precisamos recordar e vale a pena recordar o trabalho realizado pela Assembleia Nacional sobre a privatização e a capitalização de 158 empresas que tínhamos. Ficamos sem empresas.
No caso da Emapa, precisamos alugar silos e tínhamos silos públicos, mas que foram privatizados. Tivemos que alugar silos que haviam sido nossos. E com a grande pressão da produção, que foi bastante ampliada, a Emapa agora tem seus próprios silos para poder armazenar e também elaborar alimentos balanceados. Ou seja, intervém na produção dos grãos, na cadeia de comercialização dos grãos e também no abastecimento dos produtores, de alimento balanceado e dos diferentes elementos das cadeias de arroz, soja e leite, garantindo a manutenção dos preços. Aí tivemos um impacto distinto e mostramos o que pode ser a intervenção da empresa pública, o que é significativo em termos de resultados para o combate à inflação.
Bom, este foi o resultado em termos da intervenção da Emapa, uma empresa social, com uma lógica distinta, que não é o de gerar recursos, mas esse tipo de benefícios.
E como foi essa privatização/capitalização?
Foram feitas obviamente por um preço muito baixo ao longo do período neoliberal. Começamos com as privatizações, que fracassam por serem abertamente corruptas, e se transformam gradualmente em capitalização. É realmente surpreendente.
No período neoliberal diziam que as empresas públicas que não funcionavam deveriam ser eliminadas, mas eliminaram empresas que funcionavam e eram rentáveis. No caso da YPFB e da Ende (Empresa Nacional de Eletricidade) foram desmembradas e convertidas numa série de filiais, que era o que interessava às transnacionais. Então foram transformadas em empresas encarregadas de distribuição, de produção, outras de exploração. Abriram a empresa, cortaram e a fatiaram, venderam por partes, muito abaixo do valor real. Porque quando se vende não se põe o preço em função da maquinaria e do equipamento, mas do valor de mercado, e esta análise jamais foi feita.
A aposta que temos nas empresas públicas muda a lógica. As empresas públicas existem em todos os países, inclusive dentro do modelo neoliberal, vinculadas a monopólios, a serviços que o Estado tem que prestar porque nenhuma empresa privada está interessada. Nossa proposta é de mudança: o Estado como ator para poder garantir que esses recursos voltem para a população. Porque todo esse dinheiro que o povo está desfrutando hoje enquanto melhorias, iam para fora. Os que haviam comprado as empresas nos deixavam nada em termos de impostos e royalties. Essa recuperação nos permite fortalecer a economia e mantê-la em funcionamento.
No caso de Ende, em que foi recuperada toda parte de eletricidade, multiplicamos os resultados e mantivemos as tarifas, que é importante para garantir o acesso ao conjunto da população. Temos concluído o sistema integrado, bastando incluir Pando, mas estamos desenvolvendo outras alternativas, como a energia eólica e a solar, já tendo inclusive unidades geradoras inauguradas. Para cada uma das regiões distantes pensamos alternativas que garantam seu acesso à energia, sempre barateando custos. Há locais que utilizamos o sistema misto, que quando não há luz solar se utiliza o motor. Mas antes mantínhamos o motor ligado todo o dia, então estamos economizando diesel e barateando o preço dos serviços. Porque esse é o problema, quando as famílias não podem pagar deixam de utilizar o serviço.
O mesmo com a questão da água, garantindo que chegue até a um preço acessível para que todos possam utilizá-la.
Como está a questão da infraestrutura das escolas?
A infraestrutura escolar no nosso país tem sido historicamente insuficiente e de má qualidade. As escolas não cumpriam com os pré-requisitos necessários para garantir a educação. Além disso, se tens uma política de manter os alunos, seu número aumenta. Não havia escolas em todas as comunidades. As crianças tinham que ir longe a pé. Esse era um dos problemas que fazia com que muitas meninas deixassem de frequentar a escola: os riscos de caminhar longas distâncias. Em função disso muitas acabavam sendo empregadas domésticas, trabalhadoras do lar. Esse é um dos elementos que temos transformado. A construção de escolas é para melhorar as condições dos alunos para a educação.
A maior crítica que se faz ao governo é que se constroem escolas com quadras esportivas cobertas. Mas não havia nas comunidades outra forma de diversão, ficavam limitados a canchas de terra, sem o mínimo de condições, onde jogavam futebol. Agora não são só locais em que se praticam esportes, são espaços amplos de reunião, porque há um teto, onde a comunidade se reúne para realizar inúmeras atividades. Mas, sobretudo, isso permitiu melhorar a qualidade da educação.
A nível urbano e rural é o município o encarregado pela escola e isso faz com que o início das aulas todos os anos ainda seja uma tragédia. Estamos incorporando os diferentes graus, até o ensino médio, para que os jovens não precisem mais migrar para as cidades. Historicamente o estudante começava na escola do local em que vive e logo já tinha que buscar uma cidade intermediária ou uma capital para fazer o ensino médio. Mudamos isso e agora os jovens ficam com suas famílias. Incorporamos o bacharelado técnico, o que permite ter uma formação e um título adicional ao de bacharel.
Iniciamos um projeto muito interessante sobre os computadores, para melhorar o nível da educação dos alunos, sobretudo das áreas rurais e de baixos ingressos, para que se adaptem desde cedo às novas tecnologias.
Iniciamos um projeto em 2014 e continuamos entregando computadores para que comecem a manusear. Aí encontramos problemas porque há uma dificuldade em mudar a mentalidade dos professores de uma forma rápida. Portanto a resposta não foi tão veloz quanto a tecnologia. As aulas demonstrativas comprovaram isso. Em função disso começamos fortalecendo as habilidades dos professores, para depois retomar o projeto dos computadores. Temos muitas experiências exitosas em várias escolas, em outras está demorando. É o processo.
Fale um pouco sobre experiência positiva.
Em Tarija, por exemplo, distribuímos um computador para cada estudante que concluiu o ensino médio e seguimos com o projeto até que funcione do ponto de vista pedagógico. Porque senão vira uma frustração para os professores e também para os alunos. O computador é como uma pequena biblioteca, algo realmente muito interessante. E isso montamos nós mesmos por meio de uma empresa pública.(* Concebida no marco do quarto pilar da Agenda Patriótica 2025, referente à soberania científica e tecnológica com identidade própria, a Quipus tem a finalidade de melhorar e incrementar o acesso dos bolivianos às novas tecnologias de informação e comunicação. Inicialmente, através da montagem de equipamentos de computação e, numa segunda etapa, através da fabricação de componentes tecnológicos). Agora estamos montando também outros tipos de equipamentos para computadores, memórias já fazemos, começamos a fazer também telefones celulares. Com esta empresa estamos obtendo um grande êxito, porque as mudanças tecnológicas são bem rápidas, a marca tem muito peso, e estamos investindo para fortalecê-la.
Há alguma parceria no caso dos computadores?
Trabalhamos com uma empresa portuguesa, com quem começamos o desenho das características, o modelo, etc.
O lítio dialoga com estas novas tecnologias.
O tema do lítio é interessante de entender, porque as críticas são porque ainda não estamos beneficiando o produto. O que acontece é que primeiro precisamos saber qual é a capacidade que temos no Salar del Uyuni. Em segundo lugar não queremos fazer rapina, como dizem os mineiros, explorar de qualquer jeito. Por isso nos concentramos numa área do Salar para pesquisar. Estabelecemos e delimitamos uma área precisa de exploração, sustentável, preservando o resto do Salar para que mantenha as suas condições naturais. Adicionalmente, fizemos umas pequenas unidades piloto para começar a trabalhar e já estamos exportando bromato de potássio, que é também um fertilizante; começamos a montar algumas baterias, também em caráter experimental, e já assinamos contrato com uma empresa alemã para que a produção seja massiva. Temos aí já quantificado quanto, como e quando vamos a utilizá-lo. Porque era muito mais fácil dizer venha quem queira, trabalhe e lhes damos tal parte, mas as condições de manutenção do Salar são fundamentais para uma utilização sustentável. O lítio se converte, portanto, numa outra oportunidade de geração de recursos para o fortalecimento e expansão das políticas públicas, principalmente pelo peso que tem.
E quanto à recuperação dos serviços públicos, o que mais chama atenção em relação ao desastre deixado pelo neoliberalismo?
Recuperamos por exemplo a Entel (Empresa Nacional de Telecomunicações), que era lucrativa e foi vendida aos italianos, que a deixaram na lona, em zero, tecnologicamente, etc. A recuperamos com uma perspectiva distinta. Agora as comunicações têm uma cobertura nacional. Estávamos de férias no Chaco boliviano e enviamos parte da nossa equipe para explorar o bosque e não voltava. Chamamos por celular e nos responderam: estamos na pedra, que é uma pedra gigante. Isso seria impossível há alguns anos atrás. Hoje temos a cobertura rural, com programas que transmitem preços, riscos meteorológicos, e o produtor vê no seu whatsapp, recebe sua mensagem e podemos democratizar o acesso ao uso da comunicação. Com nosso satélite Túpac Katari (líder da rebelião indígena contra a dominação espanhola) as pessoas não veem somente televisão boliviana, têm acesso a vários canais. Para todas essas pessoas que estiveram ilhadas, temos agora telefone celular, acesso à televisão e ao rádio, multiplicaram-se as possibilidades. Além disso, é importante falar no custo. Com a intervenção da Entel pudemos controlar os preços das companhias que estavam fazendo os serviços e a forma de cobrança. Antes falavas um segundo e te cobravam um minuto, agora controlamos o preço, a qualidade do serviço, porque transformamos as Superintendências em autoridades, com a missão não só de que tudo esteja bem e que haja livre concorrência, mas que os serviços tragam benefícios para a população. Não é uma questão de que a competição seja o mais leal possível, mas de exercer um efetivo controle, em termos de universalidade. Hoje não temos problemas de comunicação, não temos mais zonas isoladas.
A Entel também fez telecentros para levar internet às diferentes regiões e isso facilita a comunicação.
Estávamos em Santa Cruz quando destruíram a sede da Entel entoando palavras contra Evo, e havia uma nítida vergonha da população em relação ao racismo expresso e ao vandalismo praticado contra um patrimônio que foi retomado para a coletividade, nacionalizado.
Sim, conseguimos reduzir um pouco isso, mas em 2016 se reavivou a temática do racismo. Não chegamos a fazer uma completa transformação neste ponto, é difícil, é um processo cultural que não vamos resolver com uma lei. Foi algo que esteve contido durante vários anos, mas vêm à tona sempre que se exacerbam as diferenças.
Vimos expostos em vários estabelecimentos, bares, restaurantes, supermercados, cartazes com os dizeres “todos somos iguais perante a lei”, somando na luta contra o racismo e toda forma de discriminação. Qual no seu entender a importância da identidade deste processo com um dirigente indígena e de como se reflete na autoestima geral da população
Isso se traduz nos elementos fundamentais do que tem sido esta política. Nós mudamos nosso padrão de acumulação para o de geração de ingressos através dos recursos nacionais, das empresas públicas. Mas mais do que isso, tomamos decisões soberanas, econômicas, políticas e sociais. A soberania nos determina e inclui a participação dos movimentos sociais. (O controle social hoje está determinado por lei, que obriga que anualmente todas as entidades públicas, incluindo a polícia, o Poder Judiciário e as Forças Armadas prestem contas, somente ficando de fora as informações estratégicas).
O empoderamento passa por ser o povo quem toma as decisões a partir desta soberania. A consulta que faz o presidente de forma semanal aos movimentos sociais, aos seus representantes e as discussões que têm os diferentes ministérios, as relações que temos com as empresas para definir preços.
O preço não vai se definir tão somente pelo mercado, nas circunstâncias em que há conflito. Reunimos os produtores, que apresentam seus custos de produção, e estabelecemos um diálogo para ver o que mais convém à política nacional e beneficia os consumidores. Há uma participação ativa em que o Estado não apenas entra como empresa pública, o Estado consulta e a população em geral vai tendo um posicionamento na decisão. Isso é interessante, porque quando alguém discute sobre um tema já não é uma posição de “cima”, mas é com as pessoas participando. Quando o presidente solicita os projetos nas comunidades, nos municípios, há uma consulta para ver o que realmente se necessita. E o prefeito apresenta essa demanda para o presidente para as obras “Evo cumpre”. Para a discussão com os ministérios é o mesmo, discutimos com os pequenos produtores, com os empresários privados, com todos os setores. É uma posição distinta. Já não é o mesmo estar sentado diante de um produtor que há anos esperava que você desse as respostas – em razão das relações de poder existentes – e alguém que pergunta e também dá as respostas. Mudamos porque há uma participação popular e uma independência política e econômica. Obviamente isso é algo que vai sendo construído. Todos os ministérios, todas as entidades fazem prestação de contas públicas, pelas quais todas as pessoas vão sendo informadas. Nas primeiras vezes não ia muita gente, agora as pessoas vão conhecer, saber se estás efetivamente cumprindo.
É um caminho a ser construído na prática, porém temos um grande avanço porque as pessoas têm se empoderado. Já não é o mesmo em função às decisões econômicas, políticas e sociais. Por exemplo, o que ocorreu na questão da crise do lixo em La Paz. O município afetado decidiu fechar o lixão [depósito de lixo a céu aberto] e não consultaram ninguém. Antes tu terias aberto caminho com dois militares e ponto. Agora não, é preciso ir dialogar. Então as pessoas dizem: resolvam este problema e há um posicionamento importante das autoridades. Também isso é parte da nossa estrutura cultural, temos contato com nossos representantes locais, nas nossas comunidades. Somos organizados e somos orgânicos. É um processo. Para as crianças irem à escola ter uma boa educação, um computador e uma quadra esportiva para jogar é preciso uma visão distinta. O fato de Evo ser presidente por tudo o que fez é parte do que as pessoas aspiram. Antes pensavas no presidente e vias “aquele”, agora todo mundo pode ser. É uma visão distinta, todos temos a possibilidade e isso é importante para a autoestima das pessoas, sobretudo para os jovens e as crianças.
Outro ponto é a participação das mulheres na política e nas empresas, sobretudo jovens, qualificadas, com capacidade técnica, seja na cidade ou no campo.
Vimos que isso se reflete no parlamento boliviano, composto em 51% por mulheres. Como está a participação feminina em âmbito ministerial?
Contamos com uma maior representação em anos anteriores, neste último período baixou um pouco e precisamos continuar trabalhando. (Quatro ministérios: Planificação e Desenvolvimento, Desenvolvimento Produtivo e Economia Plural, Saúde e Cultura e Turismo). Mas tem sido uma mudança muito rápida, pois são só 13 anos. Uma transformação bastante profunda para tão pouco tempo, em termos econômicos, de posicionamento.
O resultado da transparência também permitiu que tenhamos avanços importantes no combate à corrupção.
Por tudo isso vocês sabem, antes o boliviano saia para o exterior e era uma tragédia a forma como éramos vistos. Agora há uma posição e uma visão distintas, do que era o país desde fora e o que é o país desde dentro.
Obviamente, agora o interesse do império é ver como limitar todos esses avanços, mas os resultados saltam à vista, são impossíveis de ocultar.