Antes de ser forçado a convocar novas eleições para o próximo domingo (20), o presidente banqueiro Guillermo Lasso propôs uma “reforma” da Previdência que entrega aos especuladores o Instituto Equatoriano de Seguridade Social (IESS), como assumido pelo governo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma comissão criada por Lasso indica o aumento das contribuições de 30 para 35 anos e a redução das aposentadorias, abrindo caminho para a privatização. Em entrevista exclusiva, Katiuska King, ex-ministra da Economia do governo de Rafael Correa e doutora em Estudos do Desenvolvimento, denunciou a manobra: “querem ampliar a participação do mercado financeiro, querem mais especulação e lucro para os especuladores e não melhoras para o sistema”. Por isso, alertou a professora e pesquisadora da Universidade Central do Equador, “repetem a todo o tempo a mesma ladainha, que o sistema de Seguridade Social está quebrado, que nunca funciona. Forçam uma espécie de desencanto”. Conforme Katiuska, a campanha eleitoral deveria ser um momento de debate sobre os problemas estruturais, não somente seus efeitos aparentes, “se fala dos sintomas que se vê por fora, e pouco sobre as raízes estruturais”. “Defendemos o fortalecimento do Estado”, sublinhou.
LEONARDO WEXELL SEVERO E MONICA FONSECA/
COMUNICASUL, Direto de Quito
Há uma disputa eleitoral em que o presidente Guillermo Lasso tenta continuar governando por decretos, enfraquecendo o papel do Estado. Tens denunciado o projeto privatista em relação à Seguridade Social. O que está em jogo?
É muito importante e está inscrito na Constituição valorizar o papel do Estado em prol de uma sociedade melhor, proposta no Sumak kawsay [o Bem Viver na cosmovisão quéchua], garantido constitucionalmente. Por representar direitos, desagrada a certos setores do país que propuseram “reformas” na Constituição.
Defendemos que o fortalecimento do Estado passe por várias questões, que represente aumento da arrecadação e também melhor gasto, dirigido à parcela que mais necessite. O revigoramento do Estado passa pela Seguridade Social, que cobre principalmente as pessoas em situação de dependência.
A Constituição equatoriana propõe que a Seguridade esteja voltada a toda população, não somente aquela em situação mais débil, mas dirigida à universalidade.
Isso é importante pois no Equador, assim como na América Latina, temos muitas pessoas que trabalham sem um emprego formal, precisando buscar outras maneiras de ganhar a vida, de forma autônoma, por conta própria. No nosso país, uma de cada três pessoas trabalham sem estarem cobertas pela Seguridade Social.
Esta população, que é muito grande e está por fora do mercado formal, deveria estar coberta. E aqui temos problemas. O sistema de Seguridade foi pensado para países em que a informalidade quase não existia. A sociedade mudou, então é necessário que este sistema também mude. Por um lado, as pessoas vivem mais e por outro há menos cotistas no sistema, que necessita mudar para ser sustentável.
Há interesses do setor financeiro de irmos para o sistema de capitalização individual, como o do Chile. Conhecemos como um modelo em que as pessoas não precisam de ajuda, em que cada uma paga pelo seu. Não há nada de solidariedade e quem tem baixos ingressos, ou precários, não vai sequer chegar a ter pensões.
Obviamente, não falam dos problemas práticos que tiveram os chilenos com as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), com seus baixos rendimentos ou as baixas pensões pagas aos aposentados.
No sistema de capitalização individual não há nada de solidariedade e quem tem baixos ingressos, ou precários, não vai sequer chegar a ter pensões”
Quando você tem este modelo, tens o sistema de poupança. É quando há várias instituições que, em tese, podem te ajudar a garantir sua pensão, ou aposentadoria. Mas o que se faz não é garantir um direito de Seguridade Social, mas concentrar os recursos em poucas mãos, e não se pode sequer garantir que serão pagas as pensões. É grave esta situação.
No México, também funciona este sistema de capitalização individual, eles têm vários sistemas. Fizeram uma mudança um pouco depois que o Chile, e o Estado teve que intervir e pagar o que aparentemente era financiado. As pessoas contribuíram, os especuladores enriqueceram e não pagaram, fazendo com que as pessoas protestassem e o Estado tivesse que subsidiar. É preciso fazer mudanças que respeitem os princípios de solidariedade e equidade.
É um tema impopular e por isso muitas vezes os candidatos que defendem o retrocesso se omitem, enquanto têm suas campanhas financiadas para defender interesses dos cartéis privados. Como se desmascara isso?
Escrevi há uns dois anos o artigo “Os presságios de quebra como profecias autocumpridas e a antessala das AFP” [Los presagios de quiebra como profecías autocumplidas y antesala de las AFP] em que aponto que eles repetem a todo o tempo a mesma ladainha, que o sistema de Seguridade Social está quebrado, que nunca funciona. Forçam uma espécie de desencanto, de baixa credibilidade. Este discurso repetitivo não vem de agora. O processo vem de três décadas, quando quiseram implementar um sistema de capitalização privada. Em 1995 se fez uma consulta e as pessoas votaram pelo Não, que ganhou com mais de 60%.
É um atentado que vem de longe…
Exato, não é algo recente, já faz tempo que querem implementar um modelo que fracassou, como em outros países. Agora esta proposta apresenta algo que devemos estar atentos para perceber. Eles mantêm o sistema atual, e planejam fazer obrigatório o tema da capitalização pessoal, por instituições privadas ou públicas e, também, mantém o sistema de apoio às pessoas em situação de vulnerabilidade. Querem estabelecer um teto para o aporte de recursos do Estado, de acordo com o Produto Interno Bruto (PIB).
Querem ampliar a participação do mercado financeiro, querem mais especulação e lucro para os especuladores e não melhoras para o sistema”
Está muito claro que não pensam em como tornar sustentável o sistema, mas em fortalecer a capitalização individual e não em incluir quem está de fora. O que fazem é ampliar a participação do mercado financeiro, querem mais especulação e lucro para os especuladores e não melhoras para o sistema.
Como ex-ministra, às vésperas das eleições, como avalias que os meios de comunicação estejam atuando em relação a esses interesses, que os financiam?
Quando temos uma posição pública temos uma voz pública, e é possível fazer um contrapeso aos interesses privados. Neste momento, o tema midiático é terrível. O que fazem é entrevistar somente os analistas que têm as mesmas posições, não há espaço para a pluralidade, não há espaço para vozes distintas, para visões alternativas. Isso faz as pessoas terem um sentimento de desesperança. E isso não é em um só meio de comunicação, é toda uma cadeia em que vão aparecendo e repetindo o mesmo tema, de variadas maneiras, ocultando seus interesses. De forma repetitiva fazem o discurso de que a Seguridade Social está quebrada, fazem um diagnóstico irreal. Afirmam que as pensões têm problema de sustentabilidade. Porém este não é o único problema, e temos que corrigi-los. Há muitos recursos que perdemos, por exemplo na Saúde, e isso não está sendo debatido. Aliás, dizem: se você tem um sistema particular, não precisa pagar pelo sistema publico de saúde. Estão fazendo uma reforma parcial, sobre uma parte, e não estão trabalhando a integralidade. É óbvio que há interesses financeiros por detrás.
Teremos no próximo domingo (20) um confronto com os privatistas e há toda uma manipulação, com destaque para cadáveres, sequestros e torturas. Colocam em relevo a violência como causa, mascarando os problemas, sem discutir a conexão com o agravamento do desemprego, da miséria e da fome. O que há por trás disso?
Elegeram a violência como tema e, lamentavelmente, não se fala da geração de empregos. Se fala da reforma da Previdência sem falar dos direitos dos trabalhadores, da geração de emprego e renda. Confundem meios e fins. Falam de acordos comerciais. Mas o que não está em discussão é a proposta estrutural, o que queremos para impulsionar o setor produtivo, qual vai ser a nossa proposta de mudança para o Equador. Como vemos em outros países, se fala dos sintomas que se vê por fora, e pouco sobre as raízes estruturais.
Isso aqui é um tema: por que a economia do crime cresceu tanto no Equador? Um dos fatores é que a população que está na economia informal não tem outra opção. É muito importante que, quando se gera crescimento, isso venha acompanhado de empregos. Um crescimento que mantém a mesma estrutura concentradora na área exportadora, que não gera empregos, não vai resolver as coisas. Este é um projeto para o país e não uma campanha para dois anos [o próximo mandato será tampão, até 2025], restrita a estas eleições, é uma discussão mais profunda. Precisamos de uma visão estratégica, do que queremos para o futuro. Isso falta a nossos países. Nossos governos não entendem as coisas a longo prazo.
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