Para Estefania Mensi, dirigente do Sindicato de Trabalhadores de Obras Sanitárias da Grande Buenos Aires, a população já sofreu o suficiente com a tragédia da concessão à francesa Suez nos anos 90; a privatização da água no país vizinho deixa lições ao Brasil
Por Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo, de Buenos Aires – Argentina, para a ComunicaSul*
“A água é direito humano, é um recurso essencial à vida, e deve continuar em mãos públicas na Argentina, não pode ser negócio como quer o candidato Javier Milei”, afirmou Estefania Mensi, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Obras Sanitárias da Grande Buenos Aires (SGBATOS) e da Internacional dos Serviços Públicos (ISP). Em entrevista à ComunicaSul nesta quarta-feira (15), em Buenos Aires, ela defendeu o voto em Sérgio Massa (União pela Pátria) em segundo turno da eleição presidencial no próximo domingo (19).
“Milei difama o Estado e o trata como um câncer, mas não sabe rigorosamente nada sobre a estrutura pública. Em outras palavras, ele quer explodir algo que não conhece e que é central na vida dos cidadãos. O Estado está por trás de tudo”, enfatizou a secretária de Juventude do SGBATOS e cientista política.
A sindicalista expôs dados que demonstram que a empresa funciona “muito melhor” do que nos anos 90 ou no início dos anos 2000. “Ela se expandiu muito, mas há uma enorme difamação. Milei fala sobre o que não sabe”.
Do ponto de vista ambiental, alertou Estefania Mensi, “é muito arriscado deixar a água nas mãos de agentes privados, que tem como objetivo principal o lucro”. “Sem controle do Estado é difícil os recursos chegarem aos cidadãos, pois a população continua crescendo e se você não investe, você não expande. Damos vida aos bairros populares. Quando se instala uma rede de esgoto ou uma caixa d’água muda a vida de toda a comunidade”, frisou. “Como trabalhadores nós vimos isso. Criamos um programa de assistência para que essas pessoas possam aproveitar o recurso que chegou. Não faz sentido o serviço chegar e deixar o cano na rua. Por isso temos programas de financiamento para sua própria conexão. Essa dinâmica só é possível através de entes públicos”.
A sabotagem de Menem ao Estado
“Em 1995, Carlos Menem, reeleito presidente, apostou na privatização das empresas públicas e na regionalização de setores como a educação e a saúde. Sem transferência de recursos federais para as províncias (estados), houve uma drástica queda na qualidade dos serviços”, explicou, prejudicando principalmente a população de baixa renda.
Era o início da década de 90 e a Água e Saneamentos Argentinos (AySA) criada em 1930 [originalmente chamada Águas Sanitárias da Nação] encabeçava a lista das empresas a serem entregues pelos neoliberais. “Nosso sindicato atuou de forma muito intensa para mitigar o prejuízo que teríamos. Graças à luta sindical e ao nosso secretário-geral José Luis Lingeri, que participou das negociações e foi ao Congresso Nacional defender a importância de que um recurso como a água continuasse em mãos públicas, a privatização virou uma concessão. Isso foi essencial, já que vender tudo de forma definitiva dificultaria muito a reversão no futuro”, acrescentou.
Ao deixar de ser nacional e passar a ser territorializado, o serviço se fragmentou. “A parte da capital e da Grande Buenos Aires, que é onde está o maior conglomerado populacional, com 15 milhões de habitantes, ficou dependente do grupo francês Suez. O fato de ter sido uma concessão foi o que possibilitou a recuperação da AySA”, apontou.
Na época, recordou a sindicalista, “foram feitas falsas promessas aos trabalhadores, como os programas de aposentadoria voluntária que ofereciam quantias bastante interessantes naquelas circunstâncias”. “Assim, pessoas que estavam prestes a se aposentar e também jovens trabalhadores abandonaram o serviço e foram se aventurar, começando pequenos negócios, o que não durou muito. Com a crise que eclodiu em 2000, cerca de 90% de quem se demitiu voluntariamente pediu o emprego de volta. Mas a planta da empresa já havia sido reduzida à metade, bem como o seu patrimônio. Em diversas regiões, os governos tiveram que constituir cooperativas ou empresas menores, que também foram privatizadas”, denunciou.
A retomada da qualidade dos serviços, recordou Estefania Mensi, veio com “a renacionalização, que ocorreu graças a uma decisão política de Néstor Kirchner, com amplo apoio do movimento sindical”. “A empresa segue com 90% do controle acionário por parte do Estado e 10% por parte de seus trabalhadores. Esta foi uma iniciativa de Néstor para evitar ou dificultar ao máximo futuras tentativas de privatização, como pleiteia agora Milei”, disse.
Para deixar como alerta, ela lembrou o caso do ex-presidente Mauricio Macri, cujo “tarifaço” aumentou em 2.000% a conta d’água em 2016, provocando protestos massivos.
“Apesar de ser uma empresa nacional, a AySA não alcança todo o país. Abastecemos apenas 16 milhões de habitantes. Mesmo tendo trazido conhecimento científico, os franceses não cumpriram diversos pontos do acordo, como a ampliação dos serviços. Pelo contrário, cortaram pessoal quando eles precisavam ser expandidos”, acrescentou.
A sindicalista denunciou a tragédia que foi a ascensão de Macri. “Tivemos que sair para os bairros com um programa de tarifa social porque as pessoas simplesmente não conseguiam pagar. Foram operações gigantes”, recordou.
“Temos uma política clara: não cortamos o serviço, porque a água é um direito humano. Logo, muitas contas se acumulavam. Com Macri, o serviço foi interrompido. As pessoas ficaram sem água. Algo totalmente contra a lei, certo? Mas foi feito pelo ex-presidente”, condenou.
Atualmente a segunda maior empresa da região, “a AySA estabelece padrões de qualidade, presta assistência técnica e coopera com as demais, sendo motivo de orgulho por ser referência na gestão de água e recursos”.
Diante do confronto de dois projetos nas urnas, Estefania Mensi é enfática ao dizer que “é Sergio Massa quem defende as empresas públicas”. “Não estamos com Massa só pela nossa empresa, da qual obviamente temos que cuidar, mas porque estavam ameaçados acordos coletivos, modernizações e férias remuneradas. A ameaça colocada pela ultradireita está aberta em todas as frentes. Não há trabalhador sem empresa, nem empresa sem trabalhadores”, destacou.
A privatização significaria um novo tarifaço e o abandono das regiões mais vulneráveis economicamente”
Ao contrário do controle público, apontou Estefania, “a privatização significaria um novo “tarifaço” e o abandono das regiões mais vulneráveis economicamente. Isso já aconteceu e se repetiria”. “O alerta que fazemos aos companheiros trabalhadores da Sabesp, em São Paulo, é lutar bastante para barrar a privatização”.
Em relação à enorme expansão obtida no último período pela empresa sob o comando de Malena Galmarini, Estefania Mensi ressaltou que “podemos questionar e criticar muitos aspectos do governo de Alberto Fernández, mas há avanços admiráveis”. “A nível de obras públicas, houve muito progresso em infraestrutura, obras de água, esgoto, ruas e asfalto, avanços que às vezes não recebem o devido destaque”, avaliou.
Os riscos de uma candidatura como a de Milei fizeram com que ocorresse algo extraordinário para o sindicalismo: “É a primeira vez, eu diria que desde Juan Domingo Perón, que o conjunto dos trabalhadores tem posição unitária sobre um candidato em campanha, que é Sergio Massa”. “Não há interlocutor entre Massa e os trabalhadores. Ele fala diretamente com todos os secretários-gerais das centrais sindicais, algo que não acontecia há muito tempo”, concluiu.
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