Mas o que realmente é o bolivarianismo pregado por Chávez? Por que, apesar da campanha midiática, o ex-presidente venezuelano é um dos poucos consensos entre a esquerda brasileira? Para aportar elementos a este debate em torno de seu legado, o Diferente, Pero no Mucho realizou uma série de entrevistas com intelectuais e militantes a respeito do bolivarianismo e seu alcance no Brasil e publica duas matérias como resultado desta investigação.
De acordo com o professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Nildo Ouriques, o bolivarianismo é o contraponto à Doutrina Monroe, é a “América Latina para os latino-americanos”. É “a independência completa e definitiva da América Latina das potências imperialistas. (…) é um programa de soberania nacional, unidade latino-americana e fim da desigualdade social”.
Surgimento
A reivindicação do legado de Simón Bolívar é presente em toda a história venezuelana. Setores da direita e da esquerda tentam se associar à figura do líder que empreendeu a maior luta contra o domínio espanhol na América Latina.
O professor licenciado do Departamento de Economia da PUC-SP, doutor em Integração da América Latina (Prolam) da USP, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e titular da missão deste órgão em Caracas desde setembro de 2010, Pedro Barros, lembra que “com Hugo Chávez, o conceito de bolivarianismo foi redimensionado. Todo o seu movimento político teve em Bolívar sua figura central”.
Barros pontua ainda que “o termo ‘bolivarianismo’ se associou a Hugo Chávez como nunca havia se associado a ninguém. Chávez deu início em 1999 à ruptura latino-americana em relação ao Consenso de Washington”, o que foi considerado como o início do processo para a conquista de uma segunda e verdadeira independência.
O próprio presidente, durante uma fala realizada na Universidade de Sorbornne, em Paris em 10 de outubro de 2001, esclareceu que “Bolívar convocava a união da América do Sul em um bloco de forças. E dizia ser isto necessário para nos opor ao peso da América do Norte e da Europa, centros de poder no mundo. Isso fracassou, pois a América Latina, antes espanhola, veio abaixo. E aqui, 200 anos depois, estamos procurando-nos a nós mesmos (…) Qual é a nossa ideologia? É bolivariana. Porém, o que é isso? É revolucionária? Fidel Castro, durante uma visita minha, referiu-se a este ponto em uma conferência na Universidade de Havana: ‘vocês falam da luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade e a chamam de bolivarianismo. Aqui chamamos de socialismo. (…) Na realidade, não se trata de como se chama (o processo), ainda que o nome o defina. A ideologia bolivariana está sustentada por princípios revolucionários, sociais, humanistas e igualitários. Bolívar, verdadeiramente queria fazer uma revolução, porém, sua classe social, a oligarquia à qual pertencia de raiz, não o permitiu (…) a ideologia bolivariana é antineoliberal”.
O bolivarianismo permeia a luta pela integração solidária e se modificou ao longo dos anos. É a defesa da “Nossa América”, como pregava o cubano José Martí, ou da “Pátria Grande” do argentino San Martín. “Hoje, é a luta pela democracia popular republicana, e pela igualdade social. O bolivarianismo funde o patriotismo e o internacionalismo latino-americanista”, define o secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil e mestrando pelo Programa de Integração da América Latina (Prolam) da USP, Ricardo Alemão Abreu.
A luta latino-americanista deve ser realizada via uma integração popular. É o que defende o economista e fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do qual integra a direção nacional, João Pedro Stédile: “eu acho que o principal é construirmos uma integração popular da América Latina porque nossos povos só vão resolver seus problemas de maneira conjunta. Os problemas que temos são comuns porque é comum a causa da exploração que o capitalismo internacional nos impõe. Ele suga nossos recursos naturais, explora nossa mão de obra”.
Integração
Pedro Barros observa que “a constituição de 1999 incorporou o bolivarianismo ao nome do país: ‘República Bolivariana da Venezuela’, dando mais legitimidade à política externa integracionista. Instrumentos como a Alba [Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América] e a Petrocaribe estão vinculados a esse movimento. A criação da Unasul [União das Nações Sul-Americanas] e da Celac [Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos] teve explicita inspiração bolivariana. A carta fundacional de ambas, particularmente da segunda, faz referência bastante clara a Bolívar”.
Na cerimônia realizada na quarta-feira (5) em Caracas em homenagem ao primeiro ano da morte de Chávez, a primeira-ministra da Jamaica, Portia Simpson Miller, afirmou que a PetroCaribe foi criada em um momento em que o mundo atravessava uma séria crise econômica. “Nossos países que são pequenos, e sofrem também uma grave crise econômica, estariam em uma situação muito pior se não fosse a visão de Chávez”.
Os projetos integracionistas impulsionados pela Venezuela consomem, em conjunto, algo em torno de 1,5% do PIB venezuelano, “montante superior ao que qualquer país do mundo destina à cooperação internacional”, afirma Barros que cita ainda: “um exemplo são os mais de US$ 1,3 bilhão destinados ao Haiti. Nenhum outro país coopera tanto com o Haiti”.
E mesmo no Brasil, onde nossas particularidades históricas impediram o estabelecimento de uma relação mais forte com Simón Bolívar, “brasileiros ilustres, como Abreu e Lima, participaram ativamente de sua luta. Nos últimos dez anos, porém, a inspiração bolivariana esteve presente nos maiores esforços regionais do Brasil, notadamente a expansão do Mercosul, a consolidação da Unasul e a criação da Celac”, ilustra o pesquisador do Ipea.