Para responder à pergunta, realizamos uma série de entrevistas com Fernando Morais, Emir Sader, Dênis de Morais, Nildo Ouriques, Pedro Barros, Paulo Cannabrava Filho, Ricardo Alemão Abreu e João Pedro Stédile a respeito do bolivarianismo e seu alcance no Brasil.
Por Vanessa Martina Silva, no Diferente, Pero no Mucho
Em abril de 2013, poucos dias após a morte de Hugo Chávez, o colunista de O Globo, Rodrigo Constantino, publicou um artigo intitulado “O risco bolivariano” em que compara petistas a chavistas, afirma que o socialismo está ligado ao “caos e à opressão” e que os bolivarianos brasileiros “se inspiram no falecido Hugo Chávez, cujo ‘socialismo do século 21’ é exatamente igual ao do século 20”. Será?
Manifestação em apoio à candidatura de Hugo Chávez em 2012 |
Constantino diz ainda que “como não temos uma oposição política organizada que valha o nome, resta como obstáculo a esse golpe bolivariano basicamente a força de quatro instituições: família, igreja, imprensa e Judiciário”. Mas o que realmente é o bolivarianismo pregado por Chávez? Por que, apesar da campanha midiática, o ex-presidente venezuelano é um dos poucos consensos entre a esquerda brasileira? Para aportar elementos a este debate, o Diferente, Pero no Mucho realizou uma série de entrevistas com intelectuais e militantes a respeito do bolivarianismo e seu alcance no Brasil e publica duas matérias como resultado desta investigação.
O mesmo tom é verificado no artigo de Arnaldo Jabour de outubro de 2013 que alerta para “uma eventual reeleição da Dilma que, ao que tudo indica, vai partir para o ‘bolivarianismo’ explícito, como já declara o site do PT”. E diz ainda que “é nosso destino, em um governo dividido entre o ‘bolivarianismo’ e as necessidades óbvias, reais do país”.
Questionado sobre o motivo do processo de demonização do bolivarianismo e da figura de Hugo Chávez no Brasil, o jornalista e escritor, autor de livros como A Ilha, Olga, Chatô eOs Últimos Soldados da Guerra Fria, Fernando Morais, considerou que os que o fazem “têm medo de transformação. Nos anos 1960 os presidentes eram insultados como reformistas. Hoje o crime é ser bolivariano. (…) Qual é o medo deles? Desde 1960 até agora temem perder a capacidade de explorar os povos”.
Para o professor da Universidade Federal Fluminense e autor do livro Mídia, Poder e Contrapoder, que acaba de ser lançado na Argentina, Dênis de Moraes, este processo está relacionado aos papéis “estratégicos desempenhados pelos grandes grupos midiáticos: o de agentes ideológicos e retóricos a favor do ideário neoliberal e da hegemonia dos mercados”.
No caso, as “corporações querem preservar a qualquer custo suas ambições monopólicas e de poder. Os governos bolivarianos afetam seus interesses políticos e econômicos, na medida em que estão comprometidos — cada qual com suas ênfases, estilos e intensidades — com transformações socioeconômicas e culturais capazes de democratizar a vida social, distribuindo renda e riqueza, defendendo a soberania nacional e promovendo a diversidade informativa”.
Para o jornalista, historiador, escritor, diretor da revista online Diálogos do Sul e autor do livro No Olho do Furacão – A América Latina nos anos 1960/70, Paulo Cannabrava Filho, a imprensa brasileira trata o bolivarianismo desta forma porque “é difícil livrar-se da servidão intelectual, a pior das servidões. Então eles têm medo de ser livres, independentes, caminhar com as próprias pernas, ou mais apropriadamente, pensar com a própria cabeça, ver o mundo crítica e criativamente”. E como resultado disso, jornalistas de agências e portais de notícias escrevem notícias iguais, como “se todas tivessem sido escritas pela mesma pessoa, do Sul do Rio Bravo à Patagônia”.
Como parte deste processo de deslegitimação, na América Latina, quando um governo se contrapõe às medidas neoliberais ele é caracterizado com o bolivariano. Segundo Dênis de Morais, “a mídia corporativa sabe que as medidas [adotadas por estas gestões] representam uma guinada histórica na tradição de subserviência de sucessivos governos, sobretudo os neoliberais, a suas conveniências políticas e econômicas. E não se conformam de perder as posições ilegitimamente conquistadas em décadas de ditaduras militares e governos neoliberais”.
O professor da UFF ressalta ainda que “as violentas campanhas opositoras e difamatórias por parte da mídia latino-americana têm dois alvos centrais: de um lado, fragilizar e desestabilizar os governos de esquerda, em sintonia com os interesses estratégicos do imperialismo norte-americano na região; e impedir que as fundamentais mudanças na radiodifusão prosperem”, o que explica o constante ataque sofrido por tais países ao tentarem implementar leis que regulamentem a radiodifusão, como pode ser observado na Argentina, com a Lei de Medios.
É possível ser bolivariano no Brasil?
Diante deste cenário e apesar das insinuações da imprensa hegemônica de que há um movimento bolivariano no Brasil, não há um ponto pacífico dentro da esquerda sobre isso.
O escritor Fernando Morais sempre que é convidado a dar entrevista para qualquer programa de televisão, vai com uma bandeira da Venezuela. “Faço isso porque eu sou bolivariano. Na verdade, procuro excomungar estes demônios que a direita tenta pregar em nós, sobretudo nos presidente mais progressistas. Dizem que Lula e Dilma são bolivarianos, que estão levando o Brasil para o caminho da Venezuela. E eu digo: ‘quem dera! Antes fosse’”. Questionado sobre o motivo da autodeclaração, é taxativo: “porque ser bolivariano é ser revolucionário e anti-imperialista”.
Já o sociólogo e cientista político Emir Sader, considera que “o bolivarianismo não tem raízes no Brasil, porque não tivemos guerra de independência e, portanto, não temos próceres que tenham sido contemporâneos à analogia a Bolívar”.
O líder do MST concorda que não há grande expressão da corrente no Brasil, mas avalia que o bolivarianismo se expressa na integração popular. “Na América do Sul temos outras formas de expressar esta integração, acho que é reduzir a integração popular nos fixando apenas nestas expressões como ‘chavismo’ e ‘bolivarianismo’. O mais importante é defender o espírito da integração popular”, disse Stédile.
Exilado pela ditadura brasileira, Paulo Cannabrava morou em vários países latino-americanos, testemunhando diversos processos de revoluções e golpes. Para ele, o bolivarianismo é “uma utopia válida, e temos que persegui-la, dotá-la de um arcabouço ideológico, cultural, para que não se esfume como se esvaiu o sonho do próprio Bolívar”. E defende o resgate “do pensamento dos próceres latino-americanos como [José] Martí, [José Carlos] Mariátegui, [Anibal] Quijano e Darcy [Ribeiro]. Esta, inclusive, é uma das propostas do Diálogos do Sul”.
Na mesma linha, Nildo Ouriques, que defende um pensamento autônomo e integracionista nas universidades brasileiras, em contraponto ao eurocentrismo que as domina e que criou há dez anos as Jornadas Bolivarianas na UFSC, conclui que não somente é possível, como “absolutamente necessário ser bolivariano no Brasil. (…) Já não estamos mais de costas para a América Latina, mas ainda temos uma ignorância com relação a ela”.