“A greve geral disse não à Aliança Público-Privada, que é uma má fotocópia do receituário fracassado do FMI”, afirmou o intelectual e Prêmio Nobel Alternativo da Paz
Leonardo Wexell Severo
Vestido com uma goiabeira, expressão de certa solenidade, sorriso generoso, olhar amplo, Martín Almada nos recebeu à noite para uma conversa rápida, no aconchego do lar, em Assunção. Era grande a correria e pequenos os espaços na agenda de entrevistas nos instantes que precederam a histórica greve geral que paralisou o Paraguai no dia 26 de março. Mesmo assim, o bate-papo acabou se transformando em boas horas de convivência e aprendizado. Aos 77 anos, um dos mais renomados intelectuais latino-americanos, Prêmio Nobel Alternativo da Paz em 2002, traçou perspectivas para o Paraguai e para a região livrar-se das suas ervas daninhas. Almada é o advogado e pesquisador que trouxe à luz os documentos da Operação Condor, por meio da qual as ditaduras da região, em “pacto criminoso” e sintonizadas com os desígnios do governo de Washington, aplicaram, com treinamento militar estadunidense, políticas de terrorismo de Estado, para desaparecimento, tortura e assassinato de opositores. O próprio Almada padeceu mil dias no cárcere, teve sua mulher morta e todos os seus bens confiscados, sendo obrigado a amargar 15 anos de exílio. Forçado a viver longe da sua terra pela ditadura de Alfredo Stroessner, o educador patriota aprofundou o seu latino-americanismo e agora finca ainda mais fundo as suas raízes anti-imperialistas, trazendo à tona, na luta pela memória, “este espaço de luta política”, a busca de um futuro melhor num Paraguai desenvolvido e soberano. Boa leitura.
Como o senhor avalia a lei de Aliança Público-Privada (APP) que o governo do presidente Horacio Cartes busca implantar?
A meu juízo este é o mesmo plano que aplicou Menem, que fracassou na Argentina. É uma má fotocópia do que fracassou na Espanha, em Portugal, na Itália. Não há um só país do mundo que saiu da pobreza graças ao Fundo Monetário Internacional. Não há um único país que se desenvolveu entregando setores estratégicos ao capital estrangeiro. O que observo, e estou muito atento ao que ocorreu no Chile, onde vou três a quatro vezes ao ano para falar sobre a Operação Condor, é que pessoas de esquerda naquele país se tornaram socialistas neoliberais. E o pior é que se consideram socialistas neoliberais exitosas.
Passaram a ver a privatização como solução para todos os males.
Não acredito que a privatização seja o caminho. Esse é o mesmo modelo que implantou Cardoso (FHC) no Brasil. É o mesmíssimo. Eu vi na televisão o presidente Horacio Cartes falando sobre as opções do Paraguai. E dizia: a presidente Dilma privatizou aeroportos e não sei quantas coisas mais. Bom, se o Brasil que é uma potência emergente, está privatizando tudo, por que não seguimos Dilma? Foi o questionamento que Cartes fez. Esta é uma boa pergunta, não é?
Há uma evidente queda de braço sobre os rumos a seguir: se devemos fortalecer o papel do Estado, investindo no seu protagonismo ou se o caminho é via concessões ao setor privado, com instrumentos como o Investimento Direto Estrangeiro (IDE). Qual o papel dos meios de comunicação nesta encruzilhada?
Os meios de comunicação, jornais, rádios e tevês respondem a uma linha editorial e representam interesses privados, não estão nas mãos do povo. Na minha opinião, pela importância que têm, deveriam estar nas mãos da comunidade e não sob o controle do mercado, reproduzindo o ponto de vista das empresas. Infelizmente, em quase toda a região, são propriedade de poucos grupos e exercem uma concentração que não é nem um pouco democrática.
Graças à denúncia e à mobilização internacional, a tristemente célebre Escola das Américas, localizada na área controlada pelos EUA no Canal do Panamá, foi fechada. Era um centro que ensinava os mais terríveis métodos de tortura, dentro de uma ideologia que caracterizava os patriotas como opositores e, portanto, como inimigos a serem abatidos. O senhor tem alertado mais recentemente sobre os abusos da Escola de Forte Bening. O que mais lhe preocupa?
O Brasil é o país que mais envia tropas à Escola de assassinos de Forte Bening, com o Chile em segundo lugar. Para que o Brasil está preparando seus militares aí? Localizada no Estado da Geórgia, esta escola custa ao Orçamento estadunidense 190 milhões de dólares anuais. Qual é o interesse de tamanho investimento? Todos trazemos na memória o quanto de terror foi espalhado pela Escola das Américas, sabemos quais são seus ensinamentos.
Qual a leitura que o senhor faz do Brasil em relação às medidas tomadas para ajustar contas com o passado?
A mim me assombra o que acontece no Brasil. Foi um passo tímido, depois de 50 anos do golpe, abrir uma Comissão da Verdade que não é de Justiça. É uma vergonha.
Não faz jus à memória dos combatentes.
O que é a memória? A memória é um espaço de luta política. Vou dar um exemplo: que integração podemos ter com o Brasil, se seus dirigentes continuam ocultando nossa memória? Agora os arquivos da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que findou em 1870, ficarão retidos no Brasil por mais 50 anos, por uma decisão tomada no final do governo de Fernando Henrique Cardoso. Por quê? Podem ficar no Brasil, que aliás sabe guardar muito bem documentos, mas que sejam abertos ao mundo, aos professores, jornalistas, sociólogos, historiadores. Da mesma forma, é preciso que todos saibam hoje que as empresas norte-americanas estão utilizando da bandeira brasileira para invadir e contaminar o solo paraguaio.
A direita paraguaia e o governo estadunidense se utilizaram do “Massacre de Curuguaty” para dar um golpe de Estado no presidente Lugo. O que aconteceu em Curuguaty?
Segundo a imprensa internacional, sou um caçador de arquivos da Operação Condor. Atuo legalmente no Paraguai, sempre pelos canais de Justiça. Entro nos arquivos do Exército e da Marinha com a presença de um juiz. E encontramos documentos que mostram que Curuguaty, esta propriedade em litígio, é do Estado paraguaio. Estão aí os documentos. Estou seguro do que manuseio: os camponeses não invadiram propriedade privada, ao contrário, foram os latifundiários que entraram em terras do Estado, em propriedade do povo paraguaio.
E os sem-terra é que estão sendo penalizados.
O mais ridículo é que se investigue e castigue os camponeses, que são as vítimas, e não se investigue os invasores, a polícia. Estive na prisão com as vítimas e seus familiares e é evidente que a Promotoria está a serviço desta minoria parasitária que temos em nosso país. O invasor foi Blas Riquelme, que cortou a mata para plantar soja e outras coisas mais rentáveis, que não sabemos, em seu lugar. O fato é que Stroessner se foi e ficou o stroessnismo. Aqui nada mudou.
E então os golpistas tornaram a injustiça legal.
O Paraguai vive à margem da lei. Não sei se olhaste os arquivos do terror. Ali havia três ou quatro toneladas de documentos. Sempre me pergunto: Por que não queimaram? Por que não destruíram. Então, à luz da experiência, descobri que eles se sentiam muito seguros, impunes. A certeza da impunidade. Curuguaty é um exemplo da imoralidade da Justiça no Paraguai.
O senhor tem dito que a Operação Condor sobrevive.
Em Honduras, contra o presidente Manuel Zelaya, os Estados Unidos atuaram com o mesmo método da Operação Condor. Tropas militares norte-americanas, exército norte-americano, um golpe de Estado com cheiro de pólvora. Já no Paraguai é a primeira vez na história do país que a direita reacionária, medíocre, selvagem e criminosa não utilizou da violência. E pela via pacífica (risos) tirou Lugo. Não sei se foi Mao ou Lenin quem disse uma frase, que gosto muito, que a pior derrota é a derrota sem luta. E aqui a direita ganhou porque a esquerda se entregou, não lutou. Lugo tinha todo o poderio: o Exército e o povo, além do apoio internacional. Só não tinha a polícia. E se entregou. Em Honduras foi a pólvora, aqui foram os dólares. Quem participou da conspiração, possivelmente, foi o Vaticano, os plantadores de soja e os criadores de gado, os que não pagam imposto – entre eles o atual presidente Horacio Cartes.
Qual a sua avaliação da greve geral?
Acredito que, assim como o Março Paraguaio, em 1999, este foi um acontecimento onde o povo se levantou e triunfou. Esta é uma greve triunfante, que colocou a revogação da lei de Aliança Público-Privada como tema central. Agora o movimento sindical volta novamente a organizar-se e a mobilizar-se, porque o mais difícil é que os paraguaios se organizem por medo. O medo é a segunda pele do paraguaio. Esta é uma greve triunfante contra uma gente que carece de autoridade moral e que por um tempo ainda pretendeu que lhes chamassem de “honoráveis”.
A que se deve o fato de não terem ocorrido incidentes graves de repressão?
Meu critério é personalíssimo, honorabilíssimo (risos). A greve foi no dia 26 de março. Para mim foi decisivo o que se passou no dia 25, pois creio que o plano era reprimir violentamente. Mas o que aconteceu na véspera, que acontecimento não ocorreu como previsto? Houve um escândalo, com repercussão na imprensa internacional, sobre o envolvimento do presidente Horacio Cartes no contrabando de cigarros. Milhões de dólares, segundo a polícia holandesa. A partir daí, o 26 não podia ser violento. Então o governo chamou o diálogo para evitar maiores prejuízos. A meu juízo, isso o neutralizou.
Quais são as perspectivas a partir de agora?
Neste país Stroessner pôde se manter em base a dois fatores: a ignorância e o medo. A maioria dos paraguaios lê e escreve, mas não entende nem o que lê nem o que escreve. Por quê? Porque estava proibido ler. Qual foi o meu delito? Fiz um livro de tese na Universidade criticando o sistema educativo. Por isso me condenaram, fui perseguido e punido como “terrorista intelectual”. Me meteram mil dias na prisão (de 74 a 77), mataram minha esposa, confiscaram nossos bens, e me exilaram do país por 15 anos. E agora descubro uma coisa nova na história, me tratavam como se fosse um Bin Laden. Eu que nunca fui comunista nem anticomunista, eu que era um sindicalista do magistério. Decidimos aplicar a teoria de Paulo Freire, a metodologia dele, e isso me condenou. Comigo foram duros. Tenho um documento em que pedem a prisão e a tortura até da minha mãe, que era analfabeta. Diziam que ela levava cartas e informações da ditadura. A pobre da minha mãe não entendeu nada do que se passou comigo.
E o que se passou?
Sem saber, agora, 40 anos depois, vi que em 1974, fui o pequeno Snowden do Paraguai. Por quê? Fiz minha tese e levei documentos oficiais do Paraguai. Como? Havia aqui um secretário técnico de Planificação da Presidência, era uma sexta-feira, umas onze horas, e lhe digo: necessito documentos para pesquisar, para a minha tese. E ele me disse: hoje é sexta a as pessoas já não estão mais trabalhando. Por que não entras no centro de documentação e leve o que puder, o que necessitar, eu vou junto. E me chamou a atenção um documento que dizia “Paraguai, Educação, Família e Sociedade”. Eu vejo isso, investigo, falo com o meu orientador da tese, lhe mostro. Isso é raro, ele me disse. Uma espionagem sociopolítica norte-americana no Paraguai. Era um documento da CIA, e eu não sabia. Um documento da CIA. Passam os anos e encontro no google que havia uma operação que se chamava plano Camelot, que consistia numa espionagem para saber a tendência da opinião pública de cada país. Em meados dos anos 60 o Exército americano contratou a Universidade de Washington, os psicólogos, sociólogos, todos os cientistas sociais para fazer um teste e saber a tendência, para poder controlar. Isso fracassou no Chile nos anos 60 e nos 70 foi um êxito. Eu levo este documento e vejo que era da CIA. E eu não sabia.
E o que aconteceu a partir de então?
Quando me prenderam fui interrogado por militares da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai. Recordo que havia um marinheiro brasileiro e um uruguaio que estavam lá para me torturar. Oferecem café e cigarro. É que este brasileiro e este uruguaio sabiam bem quem havia sido o meu orientador. Tinha dois apoios: um era montonero, outro era do ERP (Exército Revolucionário do Povo, da Argentina). Eu não sabia. Paraguaio, chego e não podia começar minha tese porque não tinha base, a formação da universidade não me havia dado condições para investigar, para fazer um projeto. Eu não estava preparado. Então meu orientador da tese diz: vá a Montevidéu e trabalhe com Julio Castro, um professor da universidade, elabore com ele. Eu não sabia que Julio Castro era comunista. Então esse brasileiro e este uruguaio sabiam quem eram os meus professores. E eu não sabia. E me faziam perguntas e perguntas. Eu não respondia, porque não sabia. E ao final eles diziam: você é muito inteligente, sabe se esquivar das respostas (risos).
E o que ocorreu com seus professores?
Meus orientadores de tese foram assassinados. O professor mais querido de sociologia foi morto na estação de trem. Eu fui o único que escapou. Sou o primeiro paraguaio doutor em educação e o primeiro paraguaio contratado pela Unesco.
Mais alguma lembrança?
Vou contar uma coisa para rirmos. Estava num campo de concentração onde o chefe era um analfabeto. Chegou até o posto de coronel por suas debilidades, era bêbado e gostava de jogar jovens do alto do helicóptero na selva, algo bem no estilo de Stroessner, de Pinochet, de Somoza. Ele me chamava, com uma pronúncia estranha, de “indivíduo” ou “sujeito”, como se dissesse “comunista”. Então ele se aproxima de mim e diz: “estou falando com você, sujeito”. E me pergunta: “e o que você é agora?”. E eu respondo: Sou predicado, coronel. E ele não entendeu o que havia se passado.
Um apontamento triste.
Moro num bairro militar, nenhum vizinho me saúda. Um filho descobriu que seu pai era torturador e meteu um tiro na cabeça. Não morreu, mas ficou cego, surdo e mudo.
Encerrada a paralisação, abertas as mesas de diálogo, o que vem agora?
Depois desta greve o panorama paraguaio é muito mais promissor, porque se venceu o medo. Agora são eles que têm medo. Vieram delegações internacionais, companheiros da Argentina, Uruguai, Brasil, Espanha, ao que se soma a presença dos estudantes, dos camponeses. A solidariedade internacional foi forte. Nosso trabalho é agora despertar os dormidos, organizar e mobilizar os despertos. Esta é a perspectiva.