Encobrindo o crime dos latifundiários, Júri de Acusação de Magistrados (JEM) projeta sua própria desonestidade sobre os juízes que libertaram os camponeses de Curuguaty
LEONARDO WEXELL SEVERO
“O Alto Comissariado das Nações Unidas tem nos protegido dos ataques da Procuradoria Geral do Estado, realizado por meio do Júri de Acusação de Magistrados (JEM), à independência do Judiciário no Paraguai. Se tomamos a decisão como Tribunal Superior de Justiça, nenhum de nós pode ser interpelado. Querem nos desprestigiar para anular a sentença que, com base numa decisão totalmente jurídica, libertou os camponeses de Curuguaty”.
A afirmação é do juiz Emiliano Rolón, integrante da Sala Penal do Tribunal Superior de Justiça, para quem neste momento da história do seu país “a luta pela independência do poder Judiciário é a mais transcendente, porque se tornou essencial à população que precisa saber que tem juízes em quem confiar”. Sem esta segurança, reagiu, voltaríamos à época da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), “um tempo sem lei, em que imperava a força”.

Rolón destacou que o ocorrido em Marina Kue, Curuguaty, no dia 15 de junho de 2012, até hoje não pôde ser comprovado “porque, entre outros absurdos, desapareceram as filmagens do helicóptero da polícia e houve muita negligência investigativa, o que acabou por comprometer a apuração”. “O fato é que desapareceram provas. Se o Estado quer justificar a privação de liberdade, que me traga as evidências para a condenação”, acrescentou.
Após uma carnificina feita por franco-atiradores em que morreram 11 camponeses e seis policiais, os sem-terra acampados em Curuguaty foram alvo de uma campanha monocórdica de mentiras e desinformação que os havia condenado a até 35 anos de prisão por “homicídio doloso, associação criminosa e invasão de imóvel alheio”. O “conflito” pré-fabricado com o uso de forças especiais – treinadas pelos estadunidenses na Escola das Américas do Panamá e na Colômbia – foi utilizado para depor o presidente Fernando Lugo uma semana depois e jogar atrás das grades 11 trabalhadores rurais.
ANOS DE CÁRCERE
O tempo passou e, após terem cumprido seis anos de prisão, Dolores López, Lucía Agüero e María Fani Olmedo ganharam a liberdade, assim como Adalberto Castro, Alcides Ramírez, Felipe Benítez Balmori e Juan Carlos Tillería que já haviam cumprido quatro anos de cárcere. Mas Rubén Villalba (condenado a 35 anos de prisão), Luis Olmedo (20 anos) Néstor Castro e Arnaldo Quintana (18 anos) iriam continuar na penitenciária de Tacumbu, a fim de servir de exemplo para que não se ousasse levantar a voz ou a cabeça, nem jamais pronunciar a palavra reforma agrária. A reivindicação foi convertida em heresia no país do agronegócio, em que 2,5% dos proprietários controlam 85% das terras agricultáveis, 94% delas destinadas à exportação, enquanto 1,5 milhão dos 7 milhões de paraguaios padece de fome e um terço de desnutrição.
Leonardo Severo entrevista o juiz Rolón no Palácio de Justiça, em Assunção
Quando os renomados juízes Emiliano Rolón e Arnaldo Martínez Prieto, colegas de Corte e professores da Universidade Nacional de Assunção (UNA) pronunciaram o seu veredito em favor dos mais humildes, apontando os inúmeros erros patrocinados pelos júris de primeira e segunda instâncias, a reação da elite foi imediata.
Perdendo a compostura e abusando das suas prerrogativas, a procuradora geral do Estado, Sandra Quiñónez, afirmou que usaria de “todos os mecanismos legais” para que o comportamento dos juízes não ficasse impune e acionou o JEM.
Nesta segunda-feira (19) o Júri de Acusação de Magistrados, formado entre outros pelos senadores Enrique Bacchetta (Partido Colorado) e Fernando Silva Facetti (Partido Liberal) e pelo deputado Ramón Romero Roa (Colorado) – gatilhos parlamentares dos latifundiários – decidiu projetar sua desonestidade sobre os juízes Emiliano e Arnaldo, acusando-os de serem incoerentes, contraditórios, e até de não estudar a sentença.
REFERÊNCIA NACIONAL
Especialista em direito penal, referência nacional na matéria, Emiliano ridicularizou a acusação. “Foram lidos, relidos e estudados minuciosamente 40 tomos de 200 folhas cada um, esquadrinhadas 8 mil páginas, para que formássemos uma convicção de que não há provas para culpar os camponeses”, disse. Emiliano lembrou que a acusação de invasão de imóvel, por exemplo, não se sustenta porque a propriedade era de domínio público, que não há autópsia nem exame balístico ou laboratorial que possa incriminar os sem-terra e que há indícios extraoficiais da ação de franco-atiradores no local. “Houve a participação de mais de 300 policiais fortemente armados e só 11 camponeses são acusados. Por quê? Este não pode ser um processo inquisitorial, precisa haver uma justificação da realização do fato criminal. Necessitamos da prova para o fechamento do caso e não estamos em condições de afirmar a responsabilidade, uma vez que não foi demonstrada a culpabilidade, da mesma forma que não posso afirmar que são inocentes. Sendo assim, não pode haver pena. Estamos falando de seres humanos a quem não podemos prender sem provas”, acrescentou.
De acordo com Rolón, “seria mais fácil seguir a corrente e incriminar os sem-terra, mas, afortunadamente, prefiro a consciência do dever cumprido e dormir tranquilo”. “Tenho o espírito de luta dos que vieram do interior, entrei no Tribunal de Justiça em 1995 por mérito próprio e acredito na Justiça. Sei que a liberdade custa e continuarei caminhando com dignidade e integridade ao lado da lei”, frisou.
Solidário aos juízes do caso Curuguaty, o relator especial das Nações Unidas sobre a independência dos magistrados e advogados, Diego García-Sayán enviou um comunicado desde Genebra, Suíça, condenando a perseguição feita pela Procuradoria e alertando que os persistentes ataques a Emiliano e Arnaldo “prejudicam a independência do Poder Judicial no Paraguai”. “Nenhum juiz deve ser removido, ou sujeito a procedimentos judiciais ou disciplinares, como resultado do exercício de suas responsabilidades”, sublinhou.
Como integrantes da principal Corte do país, os juízes precisam ser respeitados, destacou o especialista da ONU. “É obrigação do Estado velar para que os magistrados possam tomar decisões com critérios próprios, baseadas na sua interpretação dos fatos”, concluiu Diego García-Sayán.

 

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