
Este é o primeiro de uma série de três artigos dedicados à última colônia da África: o Saara Ocidental. Há precisamente 50 anos, esta antiga colônia da Espanha pensou que a independência estava ao seu alcance, graças ao apoio das resoluções descolonizadoras da ONU e à indiferença da potência colonizadora. O que Luísa Teotónio Pereira nos conta são as vicissitudes deste território, ocupado por Marrocos, que continua hoje a exigir o seu direito à autodeterminação.
Quantas coisas aconteceram neste mundo em 1975!
Com impacto global, entre outras, podemos lembrar: a queda de Saigon, a derrota dos EUA e o fim da guerra do Vietnã; a democratização em Portugal e na Grécia, no seguimento da queda, em 1974, dos respetivos regimes ditatoriais; a descolonização do império português em África; o fim da ditadura espanhola, a restauração da monarquia e o começo do processo de transição; o início da guerra civil no Líbano e do regime de Pol Pot no Camboja. No final do ano ocorreram as invasões e ocupações militares do Saara Ocidental e de Timor-Leste. Tudo no quadro de uma crise sistêmica agudizada pelo “choque petrolífero” de 1973 e em plena Guerra Fria.
É interessante tentar compreender o que se passou com o Saara Ocidental, que é hoje a última colónia de África. O tema não é apenas histórico, é actual: continua por encontrar uma solução para o processo de descolonização que foi brutalmente interrompido há 50 anos, com consequências que mantêm o povo saharaui em sofrimento e em luta pelo seu direito à autodeterminação e independência.
Em três artigos sucessivos, entre junho e novembro deste ano de 2025, vamos tentar dar a conhecer o que sucedeu, não esquecendo que, ao mesmo tempo, se vivia em Portugal o Processo Revolucionário em Curso (PREC) e se celebravam as independências de Moçambique (25 de junho), Cabo Verde (5 de julho), São Tomé e Príncipe (12 julho) e Angola (11 novembro). A independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente em 24 de setembro de 1973, tinha já sido reconhecida em setembro de 1974. Em Timor, longe das mentes e dos corações de uma metrópole em convulsão, geravam-se as condições para uma ocupação estrangeira que durou 24 anos.
Da esperança à guerra e a luta pela soberania
Em 1975 o Saara Ocidental era a 53ª Província de Espanha. A Frente POLISÁRIO[1], movimento de libertação saaraui, tinha sido formada em maio de 1973, no seguimento de uma anterior formação praticamente aniquilada em 1970 pela repressão do regime franquista. O objetivo era a luta contra o colonialismo espanhol.
Tal como as colônias portuguesas e outras, o Saara Espanhol fazia parte, desde 1963, da lista da ONU de territórios não-autônomos, pendentes de descolonização, ao abrigo do artigo 73.° da Carta das Nações Unidas e no seguimento da aprovação pela Assembleia Geral, em 14 de dezembro de 1960, da Resolução 1514 – a “Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais”.
Ano após ano, sucederam-se as resoluções aprovadas pela Assembleia Geral da ONU (AGNU) sobre o direito à autodeterminação do Saara Espanhol. Em setembro de 1973, Madrid anunciou a sua disponibilidade para realizar um referendo e iniciou o processo de recenseamento da população saaaraui do território, que foi concluído no ano seguinte. Em agosto de 1974 a Espanha assegurou à ONU que o referendo teria lugar no primeiro semestre de 1975. Mas esse exercício de autodeterminação nunca aconteceu e continua hoje na agenda internacional.
Há 50 anos, em menos de 12 meses, o povo saaraui experimentou momentos de esperança, baseada numa forte afirmação pública da sua nacionalidade durante a visita da Missão da ONU (12-19 maio) e no veredito do Tribunal Internacional de Justiça, para logo a seguir ser confrontado com a invasão dos exércitos marroquino e mauritano, apoiados pela França (31 outubro), e com a capitulação da Espanha, ao assinar os Acordos de Madri (14 novembro), que o sujeitou ao massacre e o compeliu ao exílio no deserto argelino, na região de Tindouf.
Esta é a crônica breve desse ano de brasa, que ditou a continuidade da luta anticolonial e a organização de uma ampla resistência e que levou a Frente POLISÁRIO a proclamar a República Árabe SaarauÍ Democrática (RASD), em 27 de fevereiro de 1976.
O objetivo da Missão do Comité de Descolonização
Em dezembro de 1974 a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) solicitou oficialmente ao Comitê de Descolonização que enviasse uma missão ao território e ao Tribunal Internacional de Justiça que elaborasse um parecer sobre a questão saaaraui. As respectivas conclusões foram conhecidas em 15 e 16 de outubro de 1975. A iniciativa partiu do Marrocos e da Mauritânia e a explicação encontra-se nestes dois parágrafos da resolução 3292 (XXIX) aprovada pela Assembleia Geral em 13 de dezembro de 1974:
– [A Assembleia Geral] “Tomando nota das declarações feitas na Quarta Comissão pelos representantes de Marrocos e da Mauritânia e em que os dois países reconheceram que ambos estavam interessados no futuro do Território”
– [A Assembleia Geral] Pede encarecidamente à Potência Administrante [Espanha] que adie o referendo que tinha previsto realizar no Saara Ocidental até que a Assembleia Geral decida a política que deverá seguir para acelerar o processo de descolonização do Território em conformidade com a resolução 1514 (XV), nas melhores condições possíveis, à luz da opinião consultiva que emita o Tribunal Internacional de Justiça”.
Há evidências de que Marrocos estava convencido de que os argumentos que, conjuntamente com a Mauritânia, submeteria à apreciação do Tribunal Internacional de Justiça seriam validados e possibilitariam uma anexação rápida do território saaaraui, invocando inclusivamente o direito à autodeterminação. No entanto, não tendo a certeza de como reagiria a Espanha, então fortemente apegada à sua 53ª Província, e sabendo da oposição dos saaarauis, que desde sempre tinham combatido o colonialismo, Marrocos iniciou desde logo a preparação da sua ação militar.
Na verdade, esta opção destinou-se a adiar a concretização do referendo e a ganhar tempo para uma outra manobra de maior alcance – que surtiria efeito.
Organização da visita
A Missão do que ficaria conhecido como “Comitê dos 24” foi pedida pela Assembleia Geral com o objetivo de “manter a situação no Território sob observação” (13 dezembro 1974, Resolução 3292 (XXIX), §5). Três dias depois, a mesma Assembleia solicitou ao Comitê que continuasse “a procurar os meios adequados para a aplicação imediata e integral das Resoluções 1514 (XV) e 2621 (XXV) em todos os territórios que ainda não tenham alcançado a independência e, em particular, a formular propostas específicas para a eliminação das manifestações remanescentes do colonialismo” (Resolução 3328 (XXIX), §11).
O Comité decidiu que a Missão seria composta por representantes de Cuba (Marta Jiménez Martínez), Irão (Manouchehr Pishva) e Costa do Marfim (Simeón Ake), assumindo este último a presidência.
A visita teve lugar entre 8 de maio e 14 de junho de 1975, tendo a Missão passado duas vezes por Madri (8-12 e 20-22 de maio) e depois pelos três países vizinhos: Marrocos (22-28 de maio), Argélia (28 de maio-1 de junho) e Mauritânia (4-9 de junho). Entre as estadas na Argélia e na Mauritânia a Missão passou por Paris em trabalho e, no final, regressou a Nova Iorque via Lisboa, onde esteve dois dias – a menos de duas semanas da proclamação da independência de Moçambique (25 de junho).
Nos oito dias em que esteve no território saArauí (12-19 maio) visitou todas as cidades e povoações principais: El Aiún (capital), Daora, Bu Craa (minas de fosfato), Tifariti, Guelta Zemur, Mahbes, Smara, Villa Cisneros (hoje Dakhla), Auserd, Tichla, Argub, La Güera. Reuniu-se com as autoridades espanholas e com inúmeros grupos e comunidades locais: notáveis saarauís, delegações de movimentos políticos, estudantes, trabalhadores, mulheres.
A posição das partes
Lendo as “Observações e conclusões” elaboradas pela Missão, verifica-se que os países vizinhos do território saarauí exprimiram claramente as suas pretensões:
“O Governo marroquino reafirmou a sua reivindicação territorial do Saara Ocidental e insistiu na integração do Território no Marrocos.” (ponto 14)
“O Governo mauritano, por seu lado, reafirmou a sua reivindicação territorial do Saara Espanhol e insistiu na integração do território na Mauritânia.” (ponto 15)
“O Governo argelino declarou que não tinha qualquer reivindicação territorial sobre o Saara Espanhol.” (ponto 16)
Nas mesmas “Observações e conclusões” a Missão resumiu assim o posicionamento da potência administrante: “No que diz respeito ao referendo, o Governo espanhol considerou que o povo do Saara Espanhol tinha manifestado inequivocamente à Missão o seu desejo de independência. (…) No entanto, tendo em conta a situação existente no Território e na região, o Governo espanhol manifestou a sua vontade de se retirar do Território o mais rapidamente possível, sem deixar um vazio.” (ponto 12).
No Relatório da Missão, esta reconhece que “a posição do Governo espanhol relativamente ao momento da sua retirada mudou entre a primeira e a segunda visita da Missão a Madrid.” (§267)
A afirmação da nação saaarauí
O que aconteceu durante a visita da ONU ao território que tenha justificado a alteração das percepções de Madri?
Novamente, dois parágrafos das “Observações e conclusões” da Missão dão-nos uma chave para a compreensão do que se passou:
“No interior do território, a Missão constatou que a população, ou pelo menos a quase totalidade das pessoas com as quais a Missão se encontrou, era categoricamente a favor da independência e contra as reivindicações territoriais de Marrocos e da Mauritânia.” (ponto 18)
“A Frente POLISÁRIO, embora considerada um movimento clandestino até à chegada da Missão, parecia ser a força política dominante no Território. A Missão assistiu a manifestações maciças de apoio ao movimento em todo o Território.” (ponto 21)
Esta explosão visível de apoio à independência e à Frente POLISÁRIO foi uma verdadeira surpresa para todos os atores envolvidos, com exceção dos próprios saarauís, que a tinham cuidadosamente preparado.
Em agosto de 1974, meses antes de se sonhar com a realização da visita das Nações Unidas, o II Congresso da Frente POLISÁRIO, que decorreu sob o significativo lema “A luta de libertação, quem a garante são as massas”, adotou um programa de ação nacional, convocando toda a nação a unir-se ao movimento e aprovou o hino e a bandeira nacionais. Nos meses seguintes, a sensibilização, educação política, angariação de fundos, trabalho de propaganda e militância transformaram-se em capacidade de organização clandestina, baseada em células compartimentadas e autônomas. A rádio da Frente POLISÁRIO, que começou a emitir a partir da Líbia e depois da Argélia, assim como a poesia, veículo de comunicação das aspirações populares, facilitaram a adesão de jovens, mulheres, trabalhadores e até militares saharauis que faziam parte do exército espanhol. Desencadearam-se greves, protestos e ações coletivas que acabaram por confluir na recepção à Missão da ONU.
Isaías Barreñada e Mohamed Salem Abdi Mohamed, numa publicação de 2022 intitulada “Y las banderas tomaron las calles. Las manifestaciones independentistas de mayo de 1975 en las ciudades del Sahara Occidental español”, explicam como nessa altura “A bandeira da POLISÁRIO (…), se tornou um protagonista simbólico das manifestações independentistas. Dezenas ou centenas de bandeiras eram brandidas em cada ação. Segundo os testemunhos, as bandeiras eram essencialmente feitas à mão pelas células clandestinas e distribuídas entre os participantes, que as levavam debaixo da roupa, até que recebiam instruções para as mostrar.”
As manifestações e outras ações, como as pichações que apareceram em vários locais, em particular na capital, El Aiun, exigindo a independência, recusando a integração em qualquer dos países vizinhos, e opondo-se à continuação da administração espanhola, tiveram um enorme impacto na Espanha. A surpresa foi praticamente total, a população saaarauí era considerada inferior, sem educação e sem vontade própria e não se fazia ideia da organização que se tinha desenvolvido sob o regime vigilante e repressivo que imperava.
Consequências da Missão
Três fatores relacionados com a visita da Missão da ONU parecem ter sido decisivos para a ideia expressa por Madri de apressar a transferência de poder: a magnitude da exibição da vontade saarauí de independência; o ruir da estratégia de criação de um movimento alternativo à Frente POLISÁRIO, o Partido da União Nacional SaharauÍ (Puns), que quase não se mostrou e cujo secretário-geral, Khalihenna Ould Errachid, fugiu para Marrocos ainda antes do termo da visita; e um sentimento de ingratidão pelo fato de os saarauís não reconhecerem tudo quanto o poder na metrópole tinha feito por eles.
Na altura, no entanto, os dados pareciam não estar todos lançados. A 23 de maio o governo espanhol escreveu ao secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, reafirmando a sua vontade de acelerar a saída do Saara, transferindo “a soberania do território da forma que melhor convenha aos seus habitantes” (sabendo que estes eram claramente favoráveis à independência), mas ao mesmo tempo satisfazendo “qualquer legítima aspiração de países interessados naquela zona”. Segundo os autores acima citados, haveria opiniões diferentes em Madri e alguma indecisão. No fim do ano letivo, em junho, as famílias espanholas abandonaram o território. Ficaram os militares.
Os últimos parágrafos das “Observações e conclusões” da Missão apontam para o futuro, que transparece como urgente:
“Os membros da Missão, (…) consideram que a Assembleia Geral deve tomar medidas para permitir que esses grupos populacionais decidam o seu próprio futuro em total liberdade e numa atmosfera de paz e segurança, em conformidade com as disposições da Resolução 1514 (XV) e das resoluções pertinentes da Assembleia Geral sobre a questão.” (ponto 43)
“Os procedimentos para uma consulta deste tipo, que deverá realizar-se sob os auspícios das Nações Unidas e nas condições acima indicadas, poderão ser definidos por uma nova missão de visita designada pelo secretário-geral das Nações Unidas, em estreita colaboração com a Potência administrante e as outras partes envolvidas e interessadas.” (ponto 44).
Esta segunda Missão nunca se realizou – os acontecimentos precipitaram-se nos meses seguintes, conforme veremos nas próximas crônicas. Em 10 anos (entre 2014 e 2024) foram sumariamente expulsas do Saaara Ocidental pelas autoridades marroquinas, sem explicação, 300 pessoas, provenientes de 21 países de quatro continentes. Entre janeiro e meados de março de 2025, contabilizam-se já 21 recusas de entrada ou deportações, incluindo três parlamentares europeus. Sete organizações não-governamentais internacionais de seis países diferentes estão impedidas de pisar o solo saarauí. O Conselho de Direitos Humanos da ONU tem visto o seu pedido insistente de visita ao território consecutivamente recusado nos últimos nove anos. Em circunstâncias semelhantes se encontra a Cruz Vermelha Internacional.
Por isso é agora que uma nova missão é necessária. Quando o regime de ocupação continua a impedir o acesso livre ao território não-autônomo do Saara Ocidental e, simultaneamente, promove os negócios e o turismo nesse mesmo território, como forma de normalizar uma anexação que deseja definitiva.